1. Na passada semana, deixou-nos o Dr. Almeida Santos. Muito se disse já e bem sobre ele, enquanto homem livre e activista político defensor da liberdade, enquanto jurista de mérito e enquanto legislador exímio.
Todos esses atributos, desenvolveu-os Almeida Santos de forma serena e firme, mas sem necessitar de, para isso, humilhar alguém ou depreciar as suas ideias.
A reforma do Código Civil, que se seguiu ao 25 de Abril e que versou matérias socialmente tão importantes como a do direito de família e sucessões, dele recebeu um contributo fundamental, tanto na substância como, não menos relevantemente, no estilo claro e elegante.
Uma lei bem escrita e coerentemente pensada é, também ela, um instrumento de democracia, na medida em que evita diferendos inúteis e interpretações aberrantes.
As leis que saíam das mãos de Almeida Santos tinham sempre essa qualidade, hoje rara: a clareza e a simplicidade.
2. Tive a oportunidade – que foi um privilégio – de contactar, diversas vezes e por vários motivos, com o Dr. Almeida Santos, dadas as altas funções que desempenhou.
Sempre com ele aprendi lições que se confirmaram ser úteis à minha vida pública e profissional, e às tarefas que tive de executar. Raras foram, também, as vezes em que durante esses encontros Almeida Santos não quisesse, amigável e didacticamente, partilhar comigo e com outros colegas a sua sabedoria e, muito directamente, nos procurasse orientar no sentido de melhor lidarmos com os problemas que lhe íamos expor.
Lembrar e homenagear a memória do Dr. Almeida Santos constitui, pois, um dever de todos os que o conheceram e de todos quantos sabem do seu valor e dos contributos inestimáveis que imprimiu à consolidação da democracia e à afirmação do estado direito.
3. Há, porém, um aspecto que, enquanto procurador, faço questão de realçar no seu pensamento e que, pela actualidade, importa relembrar. Refiro-me ao que nos ensinou sobre o Ministério Público e a sua autonomia constitucional e estatutária.
Num texto de um preâmbulo que, generosamente, escreveu para um livro meu, disse Almeida Santos:
«É sincera a minha convicção de que o melhor atestado que pode exibir um Estado de Direito para certificar pertinência do qualificativo, é o grau de autonomia do seu Ministério Público. Se de Direito é o Estado que se auto-limita pelo direito; e se é ao Ministério Público que em exclusivo compete “defender a legalidade democrática” – aos Tribunais outrossim competindo “reprimir a violação” da legalidade – ou bem que o defensor dessa qualidade é autónomo em relação aos poderes do Estado, para poder defender a legalidade democrática, inclusive contra eles, ou bem aqueles poderes, em vez de se auto-limitarem pelo Direito, heterolimitam o próprio defensor.»
E acrescentou: «Abertamente pode dizer-se que em Portugal ninguém põe em causa o princípio da legalidade a que no fundo se reconduz a autonomia do Ministério Público. Mas, esporadicamente, têm surgido vozes a questionar o grau da autonomia de que efectivamente goza. Acontece isso, por norma, sempre que uma concreta acusação põe em causa a forma como o poder político é exercido. É dos livros. […] O Ministério Público é, afinal de contas, o que muito responsável político não quer que seja, sem ter a frontalidade de assumir essa recusa.»
Almeida Santos conhecia solidamente, como poucos, a forma e as circunstâncias como na vida política e social as coisas acontecem e como muita gente age e reage; reler os seus textos é pois imprescindível para com ele continuarmos a aprender.