Tanto assim é que muitos dos 10 magníficos candidatos à Presidência da República já foram surpreendidos pelas câmaras de televisão a prometer leis várias para o depois da sua eleição.
Esta crença ilimitada na virtude e potência da lei é ainda um tributo pago ao iluminismo francês e à potência da lei enquanto expressão racional da vontade popular e, como tal, capaz de modificar de forma definitiva a realidade. De 1789 até ao presente decorreram já os anos suficientes para começarmos a ter uma ideia mais precisa do resultado dos embates da lei com a realidade.
Na verdade foram almas dotadas de uma consciência social as primeiras que quiseram avaliar com alguma exigência científica a eficácia da lei na modificação da realidade. Foram sociólogos e economistas sociais aqueles que mais afincadamente avaliaram os efeitos das diversas torrentes legislativas que pretendiam proteger e cuidar dos mais desfavorecidos. E o resultado de tais estudos permitiu perceber que nem todas as leis eram eficazes e que muitas ficavam muito aquém dos resultados que pretendiam promover ou acabavam por produzir resultados contrários aos desejados. A divulgação sistemática dos esforços de melhor legiferação (“better regulation”) e de avaliação, ex ante e ex post, das leis (“regulatory impact assessment”) ficou por conta da OCDE a partir de 1995. No seio desta organização internacional a “better regulation” evoluiu rapidamente para a desregulação, para a demonização da lei e a apologia de meios “regulatórios” alternativos aos da produção legislativa. Logo em 1997 o caderno de encargos da OCDE para a “better regulation” não esconde uma matriz liberal em que a redução da produção normativa corresponde à vontade de redução do papel do Estado na economia e na sociedade.
Não se julgue que a apropriação da “better regulation” pelos liberais anti-Estado limitou a aplicação dos instrumentos de “better regulation” aos Governos de direita e á sua preocupação com os custos económicos da regulação por via legislativa. O combate à lei serve os interesses de todos os Governos, desde logo na fuga aos mecanismos de controlo político (apreciação parlamentar) ou jurisdicional (fiscalização da constitucionalidade) que estão constitucionalmente desenhados em torno de actos legislativos. A fuga à lei multiplicou regulamentos, actos administrativos encadeados, protocolos com entidades diversas, acordos em sede de concertação social nem sempre dobrados por actos legislativos, delegações de poderes públicos e de autoridade, dilatou o espaço da auto-regulação, fez proliferar as normas técnicas produzidas também por entidades privadas, deslegalizou o tratamento de muitas matérias e procurou por todas as formas possíveis descer vários degraus na hierarquia normativa. O cerco completou-se com a delegação de competências legislativas em organizações internacionais capazes de produzirem normas directamente exequíveis na ordem jurídica dos Estados-membros.
E mesmo quando ainda se recorre à lei a mesma surge despida das vestes de generalidade e abstracção e proliferam as leis medida. Ou pior, abundam as leis cartaz, desprovidas de densidade normativa e que se reduzem à comunicação política.
A honra perdida da lei deve ser resgatada em nome do princípios constitucionais da democracia e da inteligibilidade da lei. A lei só é igual para todos se puder ser compreendida por todos.
Escreve à sexta-feira