Tens Portugal no pensamento? Acto II


Em Londres as coisas funcionavam de outra maneira. Sim e as coisas lá continuam a funcionar, mas tu estás aqui em Lisboa, ninguém te obrigou a voltar.


Que cara é essa? Ainda estou a digerir o que se passou no IEFP. Então? Tinhas de fazer a inscrição e informar-te de como receber o subsídio de desemprego em Portugal apesar de teres trabalhado fora do país, simples não? É, eu também achava que sim. Mas o técnico com quem falei deitou-me um bocado abaixo, sempre a dizer que eu não devia ter voltado para Portugal e depois quando já me estava a vir embora uma senhora disse, terás de provar que o teu centro de interesses esteve sempre em Portugal. Que sempre tiveste Portugal no pensamento. E só disse isso? As sacerdotisas de centro de emprego não falam muito. Mas o que é que ela queria dizer com aquilo? Pois, não sei. Os óraculos sempre foram assim, deixam aos humanos as conclusões. Insistem que é descobrindo-nos a nós mesmos que entendemos o universo. O que eu sei é que não estou a gostar nada disto. Não estou habituado a esta indefinição. A multitude de cenários não me agrada. Ser deixado à minha imaginação muito menos. Imagina se o óraculo não tivesse intervindo. Imagina se eu não tivesse insistido, se não tivesse feito perguntas. Se a sacerdotisa não tivesse ouvido tísico, estaria agora ao deus dará. À deriva. Desta vez tive sorte. Foi um acaso. Uma entidade do estado não pode funcionar assim, como uma instituição de caridade. Deixando-me à mercê de funcionários no limite das suas capacidades ou da boa vontade alheia. Não fui em busca de um favor, mas de um direito.

Em Londres as coisas funcionavam de outra maneira. Era tudo mais concreto. Com menos espaço para desentendimentos. Sim e provavelmente as coisas lá continuam a funcionar lindamente, mas tu estás aqui em Lisboa, ninguém te obrigou a voltar e é com este presente, com esta realidade que tens de lidar. Chamas a isto realidade? Já viste o limbo em que apenas uma ida ao IEFP me colocou. Dizem que tenho de ir à Segurança Social provar que Portugal esteve no meu centro de interesses. Provar como? Sim, sim todos os dias de manhã era logo meu primeiro pensamento. Estou-lhe a dizer. Pensava sempre no meu país enquanto estava em Londres. Direi que às terças usava um boné com a bandeira nacional e ia a assobiar o hino pela high street fora. Às quintas ia para a Golden Square olhar para a placa que assinala onde viveu o Marquês de Pombal escorrendo-me esferas armilares pelos olhos abaixo. E ao Domingo mesmo que estivesse um frio de rachar ia para um café português para ver a bola e ser questionado, queres chips com o bitoque? Desta última sou de facto, culpado. Será que me vão testar? Porque escala se mede a portugalidade sanguínea? Terão um detector de mentiras? Ou um mentalista nos quadros superiores, especialista em tramar desemigrantes?
E se descobrem que nem sempre pensei no meu país. Por vezes não vim cá de férias. Considerei pedir dupla nacionalidade, que estava ali à distância de um God Save the Queen. Estive com as malas feitas para ir viver nos antípodas. Onde estará a linha que define o limite do tal centro de interesses? E se descobrem que quanto a nacionalismos prefiro as fronteiras esbatidas. Será que receberei a sentença de apátrida por desinteresse ou periférico de coração?

E se? E se? E se! Só tens uma maneira de descobrir. Tens de enfrentar a besta, descer aos infernos e ir à Segurança Social. Esse é o teu próximo trabalho dos 12 que te estão destinados, é o teu destino por marcação prévia. Vai meu Hércules da Penha de França e na volta traz cebolas. Eu fui. Uma, duas, três vezes. Os meses foram passando. Depois deixei de contar. Não sei quanto tempo lá estive. Esbarrei sempre no guardião da porta do inferno. O Cão Cérbero com suas três cabeças e gravata curta demais.

Vi tudo e nada demais. As histórias do costume na entrada do mundo inferior. No final de 2013 as portas estavam mais abertas do que nunca, o cão deixava as pessoas entrar, mas poucas conseguiam sair do sub-mundo. Vi o que todos viram. Vi o absurdo normalizar-se. Vi pessoas a suplicar, a chorar, já sem o pudor de fingir dignidade diante dos filhos, vi gente a rir na histeria de não saber o que fazer às suas vidas minguadas. Uma vez vi um senhor enorme irromper pelo serviço local de atendimento, directo ao Guichet 11 e tapar as luzes da sala com a sua tristeza gigante e muda. Era tão grande que quase não se reparava nos seguranças desesperados que levava em cada mão, arrastados como crianças birrentas. Ficámos todos calados. Todos à espera.   

Alguém ter-me-á visto também. A bracejar com o documento U2 na mão. You two. Dito em inglês inconsciente do meu emigrantismo. You two? Isso é a banda de rock! U2. Ouviste isto? A rir para outra das suas cabeças. Você quer dizer U Dois, U. 2. Mas você precisa é do U. 1. Mas eu falei com o departamento 2. Mas devia ter falado com o departamento 3. Mas foram eles que me contactaram por email. Impossível. 

O cão latia sempre o mesmo: Isso é impossível.  Recorri. Protestei. Levantei a voz e reclamei. Em retorno recebi três cartas com o carimbo da besta: Indeferido. Indeferido, Indeferido. Três Grrrrr-nãos com todos os dentes. Estou só a fazer o meu trabalho. Uivou-me. E desisti. Após um ano fui para casa. Chega disto. Li mal, vim mal informado. Afinal não tenho direitos apesar de ter feito os devidos descontos em Inglaterra. É assim. É o Estado que o diz. Um Hat-trick de negação. Há que saber perder. Quem sou eu para contestar? Está aqui, por decreto de lei. Desisto. Já perdi tempo demais. Metam-me na barca. Aqueronte, leva os meus sonhos e o meu futuro e deixa-me na outra margem. Não tenho trabalho nem subsídio. Ai de mim. Recebo uma quarta carta. Excelentíssimo senhor apesar do seu esforço hercúleo, o seu pedido foi indeferido. Que sádicos. Não é preciso pisar mais a ferida. A menos que consiga provar que o seu centro de interesses é o Estado-Membro Português. O óraculo! A sacerdotisa! Com mil raios, ela bem disse para eu não desistir a seguir a ter desistido. Depois de tanto tempo. Porque não disseram isto logo na primeira carta? É fácil criar cenários de conspiração. Queriam que desistisse. Não interessa. Agora tenho a frase por escrito. Está aqui em papel. Assinada pela mão de Hades e tudo. Agora é que vai ser. Ai cão. Vais ver como elas mordem.

Tens Portugal no pensamento? Acto II


Em Londres as coisas funcionavam de outra maneira. Sim e as coisas lá continuam a funcionar, mas tu estás aqui em Lisboa, ninguém te obrigou a voltar.


Que cara é essa? Ainda estou a digerir o que se passou no IEFP. Então? Tinhas de fazer a inscrição e informar-te de como receber o subsídio de desemprego em Portugal apesar de teres trabalhado fora do país, simples não? É, eu também achava que sim. Mas o técnico com quem falei deitou-me um bocado abaixo, sempre a dizer que eu não devia ter voltado para Portugal e depois quando já me estava a vir embora uma senhora disse, terás de provar que o teu centro de interesses esteve sempre em Portugal. Que sempre tiveste Portugal no pensamento. E só disse isso? As sacerdotisas de centro de emprego não falam muito. Mas o que é que ela queria dizer com aquilo? Pois, não sei. Os óraculos sempre foram assim, deixam aos humanos as conclusões. Insistem que é descobrindo-nos a nós mesmos que entendemos o universo. O que eu sei é que não estou a gostar nada disto. Não estou habituado a esta indefinição. A multitude de cenários não me agrada. Ser deixado à minha imaginação muito menos. Imagina se o óraculo não tivesse intervindo. Imagina se eu não tivesse insistido, se não tivesse feito perguntas. Se a sacerdotisa não tivesse ouvido tísico, estaria agora ao deus dará. À deriva. Desta vez tive sorte. Foi um acaso. Uma entidade do estado não pode funcionar assim, como uma instituição de caridade. Deixando-me à mercê de funcionários no limite das suas capacidades ou da boa vontade alheia. Não fui em busca de um favor, mas de um direito.

Em Londres as coisas funcionavam de outra maneira. Era tudo mais concreto. Com menos espaço para desentendimentos. Sim e provavelmente as coisas lá continuam a funcionar lindamente, mas tu estás aqui em Lisboa, ninguém te obrigou a voltar e é com este presente, com esta realidade que tens de lidar. Chamas a isto realidade? Já viste o limbo em que apenas uma ida ao IEFP me colocou. Dizem que tenho de ir à Segurança Social provar que Portugal esteve no meu centro de interesses. Provar como? Sim, sim todos os dias de manhã era logo meu primeiro pensamento. Estou-lhe a dizer. Pensava sempre no meu país enquanto estava em Londres. Direi que às terças usava um boné com a bandeira nacional e ia a assobiar o hino pela high street fora. Às quintas ia para a Golden Square olhar para a placa que assinala onde viveu o Marquês de Pombal escorrendo-me esferas armilares pelos olhos abaixo. E ao Domingo mesmo que estivesse um frio de rachar ia para um café português para ver a bola e ser questionado, queres chips com o bitoque? Desta última sou de facto, culpado. Será que me vão testar? Porque escala se mede a portugalidade sanguínea? Terão um detector de mentiras? Ou um mentalista nos quadros superiores, especialista em tramar desemigrantes?
E se descobrem que nem sempre pensei no meu país. Por vezes não vim cá de férias. Considerei pedir dupla nacionalidade, que estava ali à distância de um God Save the Queen. Estive com as malas feitas para ir viver nos antípodas. Onde estará a linha que define o limite do tal centro de interesses? E se descobrem que quanto a nacionalismos prefiro as fronteiras esbatidas. Será que receberei a sentença de apátrida por desinteresse ou periférico de coração?

E se? E se? E se! Só tens uma maneira de descobrir. Tens de enfrentar a besta, descer aos infernos e ir à Segurança Social. Esse é o teu próximo trabalho dos 12 que te estão destinados, é o teu destino por marcação prévia. Vai meu Hércules da Penha de França e na volta traz cebolas. Eu fui. Uma, duas, três vezes. Os meses foram passando. Depois deixei de contar. Não sei quanto tempo lá estive. Esbarrei sempre no guardião da porta do inferno. O Cão Cérbero com suas três cabeças e gravata curta demais.

Vi tudo e nada demais. As histórias do costume na entrada do mundo inferior. No final de 2013 as portas estavam mais abertas do que nunca, o cão deixava as pessoas entrar, mas poucas conseguiam sair do sub-mundo. Vi o que todos viram. Vi o absurdo normalizar-se. Vi pessoas a suplicar, a chorar, já sem o pudor de fingir dignidade diante dos filhos, vi gente a rir na histeria de não saber o que fazer às suas vidas minguadas. Uma vez vi um senhor enorme irromper pelo serviço local de atendimento, directo ao Guichet 11 e tapar as luzes da sala com a sua tristeza gigante e muda. Era tão grande que quase não se reparava nos seguranças desesperados que levava em cada mão, arrastados como crianças birrentas. Ficámos todos calados. Todos à espera.   

Alguém ter-me-á visto também. A bracejar com o documento U2 na mão. You two. Dito em inglês inconsciente do meu emigrantismo. You two? Isso é a banda de rock! U2. Ouviste isto? A rir para outra das suas cabeças. Você quer dizer U Dois, U. 2. Mas você precisa é do U. 1. Mas eu falei com o departamento 2. Mas devia ter falado com o departamento 3. Mas foram eles que me contactaram por email. Impossível. 

O cão latia sempre o mesmo: Isso é impossível.  Recorri. Protestei. Levantei a voz e reclamei. Em retorno recebi três cartas com o carimbo da besta: Indeferido. Indeferido, Indeferido. Três Grrrrr-nãos com todos os dentes. Estou só a fazer o meu trabalho. Uivou-me. E desisti. Após um ano fui para casa. Chega disto. Li mal, vim mal informado. Afinal não tenho direitos apesar de ter feito os devidos descontos em Inglaterra. É assim. É o Estado que o diz. Um Hat-trick de negação. Há que saber perder. Quem sou eu para contestar? Está aqui, por decreto de lei. Desisto. Já perdi tempo demais. Metam-me na barca. Aqueronte, leva os meus sonhos e o meu futuro e deixa-me na outra margem. Não tenho trabalho nem subsídio. Ai de mim. Recebo uma quarta carta. Excelentíssimo senhor apesar do seu esforço hercúleo, o seu pedido foi indeferido. Que sádicos. Não é preciso pisar mais a ferida. A menos que consiga provar que o seu centro de interesses é o Estado-Membro Português. O óraculo! A sacerdotisa! Com mil raios, ela bem disse para eu não desistir a seguir a ter desistido. Depois de tanto tempo. Porque não disseram isto logo na primeira carta? É fácil criar cenários de conspiração. Queriam que desistisse. Não interessa. Agora tenho a frase por escrito. Está aqui em papel. Assinada pela mão de Hades e tudo. Agora é que vai ser. Ai cão. Vais ver como elas mordem.