Memórias com Almeida Santos. Foi assim que aconteceu

Memórias com Almeida Santos. Foi assim que aconteceu


Histórias da longa vida do ex-opositor ao regime e advogado de sucesso em Moçambique, que depois seria dirigente do PS, legislador, governante e presidente da AR. A generosidade e a confiança nos mais novos sobressaem nos traços de caráter de Almeida Santos, recordados ao i por correligionários e adversários políticos, no dia a seguir ao seu desaparecimento.


António Campos – Cofundador do PS

A história do ex-FP 25 que acabou a vender fruta na Estrela

António Campos, que foi secretário de Estado de Almeida Santos na presidência do Conselho de Ministros, recorda a sua generosidade. Um episódio ocorrido em 1983, quando era ministro de Estado e dos Assuntos Parlamentares. A cena passa-se na velha sede do PS da Rua da Emenda, onde ambos eram dirigentes e estavam numa reunião do Secretariado. Almeida Santos tinha “metido uma pessoa no gabinete do secretário-geral, Mário Soares e, disse-me ‘tens de vir ali fora para resolver um problema a uma pessoa’”. António Campos estava habituado a ser convocado para “atos de solidariedade com regularidade, em S. Bento” mas o que se seguiu excedeu o que conhecia. O homem no gabinete de Mário Soares era um elemento das FP-25 de Abril, a organização terrorista que atormentou o país nos anos 80. Almeida Santos apanhara-o no caminho para o Algarve, dando-lhe boleia. O homem “estava em dificuldades e queria refazer a vida” e o ministro socialista apiedou-se. “Temos de o ajudar”, disse a António Campos que, preocupado com o potencial de desastre de ter um membro das FP-25 no gabinete de Mário Soares, lhe disse que era “impossível”. Almeida Santos não se conformou: “Não te preocupes, eu ajudo-o”. A sequência da história, conta António Campos ao i, envolve a compra de um triciclo motorizado. “O Almeida Santos comprou-lhe o carrinho da fruta e o homem esteve vários anos a vender perto da Basílica da Estrela. “E ele ia lá comprar fruta antes de ir para S. Bento”.

 

António Arnaut – Ex-ministro de Soares

O “passar de pasta” ao novo ministro da Justiça que não o foi

Várias vezes ministro em governos após o 25 de Abril, Almeida Santos preparava-se para deixar a pasta da Justiça, que bem conhecia e onde tinha deixado marca, para passar a ter outras responsabilidades, no 2.º Governo Constitucional. António Arnaut, dez anos mais novo, era o escolhido por Mário Soares para lhe suceder. “Eu era advogado, tinha trabalhado com afinco e já levava o programa do Ministério da Justiça mais ou menos delineado, quando fui ter com Almeida Santos a S. Bento”, conta Arnaut. O dito programa tinha uma medida revolucionária na justiça, a criação de um “Serviço Nacional da Justiça”. Insatisfeito com a forma como funcionava o defensor oficioso, que muitas vezes “se limitava a pedir justiça no julgamento”, Arnaut arquitetara criar do zero “uma carreira de defensor público para as pessoas carenciadas”. Estava-se em 1978 e a medida era revolucionária. A Almeida Santos pareceu ótima, conta Arnaut. “Ele disse-me: ‘Isso é uma excelente ideia. Mas ouve lá rapaz, tem cuidado com os magistrados’”. O candidato a ministro da Justiça não chegou a preocupar-se com a reação corporativa a uma nova carreira na justiça. Três dias mais tarde, Soares chamou-o e disse-lhe que não tinha arranjado alternativa para o ministério dos Assuntos Sociais, “teria que ser eu”. Mas o incentivo de Almeida Santos terá ajudado Arnaut a transpor a lógica do Serviço Nacional de Justiça para a área da Saúde. Nascia o SNS e Almeida Santos dar-lhe-ia “muitos bons conselhos” nos anos que se seguiram.

 

Vera Jardim – Ex-ministro de Guterres

Um quase estagiário à frente do escritório de Almeida Santos

José Vera Jardim foi sócio de um grande escritório de advogados e ministro da Justiça de António Guterres. Em 1963-64, porém, era um novato na advocacia, com pouco mais do que o estágio feito, quando se viu despachado para o serviço militar em Moçambique. O conhecimento com Almeida Santos começa com um telefonema de uma cabina telefónica em Lourenço Marques (atual Maputo). “Tinha acabado de chegar de uma viagem de 18 dias no Niassa, levava uma carta de recomendação de Mário Soares e ia para a região do Tete”, recorda Vera Jardim. Na época Almeida Santos era uma figura política e jurídica de vulto em Moçambique. “Era o chefe da oposição e estava à frente de um grande escritório de advogados”. A chamada telefónica foi correspondida “com um convite imediato para almoçar com ele”. Vera Jardim seguiu viagem para a região central de Moçambique mas um ano depois conseguiu ser requisitado para os serviços de justiça militares em Lourenço Marques. O horário era leve e Almeida Santos convidou-o para ir fazendo uns trabalhos de advocacia mas a progressão foi rápida. Algum tempo depois, Vera Jardim ficou dois meses à frente do escritório de Almeida Santos, durante umas férias deste na Metrópole. “Eu, um puto, com 23 anos, a tomar conta de um escritório daquela dimensão. Havia clientes que me metiam medo”, admira-se ainda hoje Vera Jardim. Mais tarde os dois colaboraram na defesa de intelectuais moçambicanos acusados de relações com a Frelimo. “Eu mantinha-o informado da marcha do processo nos serviços de justiça militar”.

 

António Filipe – Deputado do PCP

Um presidente que confia nos deputados

O mais antigo deputado comunista em funções (com exceção de Jerónimo de Sousa) fez a sua estreia no Parlamento em 1989. Almeida Santos era então, para o jovem jurista António Filipe, o “pai dos juristas”. Presidia à comissão de revisão constitucional que levou a cabo uma das grandes revisões, a que abriu o sistema económico e pôs fim à irreversibilidade das nacionalizações. O deputado do PCP estava mais centrado porém na disposição sobre o serviço militar, e trocou argumentos vivos na comissão parlamentar, sob o beneplácito e a cordialidade de Almeida Santos. A relação de simpatia evoluiu. “Fazia o favor de ser meu amigo e enviava-me os livros que ia publicando com dedicatórias simpáticas”. Em bancadas diferentes, os dois continuaram a discutir política de forma polida. Mas houve um equívoco que poderia ter afetado as boas relações. Almeida Santos era presidente da AR e havia uma comissão eventual sobre a toxicodependência. O socialista defendia de uma forma contundente a liberalização da droga, “a minha posição não era nem é essa”, diz Filipe. O_problema veio de umas declarações do deputado comunista a um jornal, “desagradáveis, porque mal citadas”. O_equívoco seria desfeito num cartão enviado a Almeida Santos e a resposta deste comoveu o comunista: “Meu caro António Filipe que isso não lhe dê cuidado. Ainda que fosse verdade não punha em causa a nossa amizade. E ainda mais não sendo”. A amizade entre ambos saiu reforçada.

 

José Eduardo Martins – Ex-deputado do PSD

Do protesto indignado aos brindes na Rússia

José Eduardo Martins já não é deputado mas não esquece o ex-presidente do Parlamento. A sua relação com Almeida Santos, em boa verdade, podia ter começado bem melhor. “Eu era um jovem deputado e ele presidente da Assembleia. Aproveitei um Agosto sem notícias, passe o pleonasmo, para me queixar ao DN que não me deixava consultar os documentos da CI  [Comissão de Inquérito] da Expo [98]. O DN fez da coisa capa”, recordou o social-democrata ontem na sua página do Facebook. “Ele escreveu-me uma carta que nunca divulgou. O gesto chegava mas a carta, que fica entre nós, valia mais e ensinou-me bastante”. José Eduardo Martins diz que “daí em diante ficou um enorme respeito”, que acredita ser mútuo. Um episódio posterior valeria a sua admiração. Foi numa deslocação à Duma, o parlamento russo, em que  Almeida Santos brilhou. “Deu gosto ver um político português a citar com abundância e propósito os russos e, desculpem a imodéstia, a convidar-me a acompanhá-lo nessa odisseia que sempre são os brindes na Rússia”, conta o ex-deputado. A demonstração de virtuosismo literário e a prova de resistência etílica garantiram ao histórico socialista uma lugar à parte na memória do político social-democrata. José Eduardo Martins termina a evocação no Facebook, integrando Almeida Santos na categoria elegíaca dos “homens de outro tempo” e desejando “que descanse com toda a paz”.

manuel.a.magalhaes@ionline.pt