A última vez que vimos Gabriel Ferrandini foi uma tragédia. Não literal. O músico compôs toda a música da trilogia que Tiago Rodrigues levou ao palco do Teatro Nacional D. Maria II e em “Agamémnon” chegava mesmo a interpretá-la ao vivo. Não foi apenas em palco que o encontrámos recentemente. Aliás, temos andado com Ferrandini nos ouvidos. Talvez o próprio desconheça o facto – e isto nem sequer é stalking, calma – mas desde o momento em que a chefe está de mal com a vida até à resposta torta da colega da frente, o baterista tem sido o nossa salvação. Isso e concertos – que mais parecem jams para saborear no parque – que nos fizeram esquecer o quão madrasta a vida pode ser. Gabriel Ferrandini é uma espécie de salvador, oxigénio quando a realidade é demasiado brusca para a encarar. O que agora nos troca as voltas é a tentativa de dar estrutura a uma linguagem que sempre foi tão livre… sobretudo ao ponto de fazer uma residência na ZDB transversal a 2016. “A Volúpia das Cinzas” talvez venha a ser um disco no final das contas. Para já é um work in progress, uma reclusão numa cave que conhece a luz para concertos periódicos. O primeiro é já amanhã.
Acompanhado por Pedro Sousa, no saxofone, e por Hernani Faustino, no contrabaixo, Gabriel Ferrandini diz-nos que este projeto é um apelo próprio a uma maior responsabilidade. “Não que tenha algum problema em estar no background como baterista mas apetecia-me lidar mais com melodias e estruturas. A primeira ideia foi fazer um disco mas rapidamente percebi que não tinha tempo. A ideia da residência é uma oportunidade de fazer isto com mais calma, em vez de criar um disco imediato posso ir fazendo, compondo, trabalhando de forma progressiva”, explica. E o resultado será um disco? “É possível que sim como é possível que não. Ainda não chegamos a essa parte”.
Garantias, como já se percebeu, há poucas. Podemos assegurar que free jazz e improvisação não vão faltar, não estivéssemos nós na presença dos poucos músicos que carregam este estilo às costas em Portugal. “A grande tentativa é juntar os dois mundos [jazz clássico e improvisação], conseguir ter umas melodias e umas coisas bastante estruturadas, mas não demais. Também não é do meu interesse vir para aqui tocar um beat afro-cubano ou uma cena caribenha. No fundo, o que queremos é encarar melodias de forma mais livre”, conta Ferrandini.
“A Volúpia das Cinzas” é, só por si, um nome denso, pesado, que o baterista gosta de deixar a pairar, numa componente de misticismo que se estende à sua música e forma de estar: “Tenho gostado de ter algum mistério à volta disto. E numa de ver se o pessoal sente o vibe quando ouvir o concerto e associa o nome às músicas. Não quero revelar muito mais mas tem a ver com uma vida cíclica e uma nova fase, a celebração, o fogo, as cinzas como adubo”.
Gabriel Ferrandini não teve uma mãe a tocar trompete nem um pai com uma coleção incrível de Coltrane, Davis ou Ellington. O jazz foi uma descoberta própria, daquelas às quais se seguem um kit de bateria para a garagem da família, tinha apenas 13 anos. “Há uns tempos encontrei, em tour, um baterista sueco do old school de quem gosto muito que me disse uma coisa engraçada: ‘No início escolhemos as coisas por fascínio e por paixão mas eventualmente chega um dia em que tomámos aquela decisão’. Um dia já cá estamos, a fazer”. Isso, fazer… é o único remédio.