“O Neil Young sempre foi bom tipo”, diz–nos Maria Mascarenhas na hora de colocar “Neil Young: The Archives Vol. 1” como suporte para o gravador. Entrevista abençoada, por certo, até porque ali bem perto está uma caixa da coleção comemorativa dos 100 anos de Manoel de Oliveira. A vizinhança é boa para a digna porrada de discos que habitam na sala de estar – outras vezes, sala de ensaios – da casa de Levi Martins e Maria Mascarenhas. Que é igual a dizer a casa da Companhia Mascarenhas-Martins, que amanhã – às 16h, na Casa Mora, Montijo – se apresenta ao público numa conversa com João Brites, Luís Miguel Cintra, João Lourenço e Vera San Payo de Lemos. Uma nova companhia, sem lar, mas que nem por isso vive desabitada.
Sair da sala, direita volver para a sala de leitura. Um sofá com vista para uma estante enorme de livros de todas as áreas. Do teatro à história, ao cinema, a bibliografia nunca teve limite. Também não é caso para marchar, basta seguir pelo corredor até a uma espécie de escritório/sala de produção. Contam-se guitarras, amplificadores, uma breve jam session que dedicaram ao nosso fotógrafo na hora do disparo, computador meio velho – daqueles ideais para tratar da burocracia, cujo teclado tem quase o mesmo tamanho que uma banheira –, canetas que se emprestam a jornalistas distraídos. Há de tudo. E sim, se por esta altura se encontra algo confuso, cá estamos nós para esclarecer.
É que a Companhia Mascarenhas-Martins não se dedica exclusivamente ao teatro. Ela é cinema, ela é palestras/conversas que pretendem discutir política cultural, ela é concerto, pelos próprios, no dia de apresentação da companhia… disparate, ela não, eles. Levi Martins e Maria Mascarenhas conheceram-se no último semestre da Escola Superior de Teatro e Cinema (ESTC) – onde Levi estudou cinema, e Maria, teatro –, isto apesar de terem entrado na mesma altura. Cruzaram-se gostos e o prazer em quebrar tabus em áreas com tantos velhos tiques e preconceitos. Percurso que depressa virou comum. “Lembro-me de estarmos a beber uma cerveja a ver um jogo da seleção nacional num mundial ou europeu”, conta Levi, que conseguiu convencer Maria, apesar do ódio que esta tinha em relação aos alunos de cinema na ESTC. “No refeitório, eles comiam primeiro. Quando chegávamos, já só tínhamos os restos, só havia seitan… e fria.”
uma loucura ponderada A conversa ia animada. Até que quem escreve estas páginas decide dar um tom sério à coisa e perguntar se os dois criativos têm noção do risco que correm ao embarcar numa epopeia destas com o estado atual da cultura. “Claro, isto é uma espécie de impossibilidade técnica. Se pensarmos que é uma derrota à partida, torna-se muito mais interessante. Temos sentido entusiasmo nesta equipa, nas pessoas que estão à nossa volta, no querer fazer. Se isso vai permitir que vivamos todos desta companhia num futuro próximo… somos realistas, achamos que não”, enquadra Levi Martins.
Chamemos-lhe loucura ponderada. Aquele género do-it-yourself que faz estremecer a relação casa-trabalho, que confunde os horários e a vida familiar. O facto de a sua casa ser o seu local de trabalho dá vontade de dizer que estamos perante teatro em família – não confundir isto com a revista, atenção.
Maria Mascarenhas, a propósito dessa condição de precariedade que os impede de ter um palco e camarins próprios, tem uma boa sugestão: “Pensei em colocar uma linha vermelha aqui em casa a separar o lazer do trabalho… [risos] Já discutimos muito, às vezes é difícil separar as coisas. Acabámos por decidir que não se separa e pronto. Estás sempre a viver aqui, a falar sobre o mesmo, isso acontece porque queremos isto, é uma opção”, esclarece. Levi Martins não demora a acrescentar que não é, obviamente, a melhor das soluções: “Ao mesmo tempo é por necessidade. Não é que não queiramos ter um espaço mas, quando começas, as hipóteses não são muitas. Posso dizer que temos estado em diálogo com a Câmara Municipal do Montijo no sentido de rever a situação”, afirma.
Agitar o montijo São os dois fundadores que nos dizem que no Montijo nunca existiu uma companhia profissional de teatro, “pelo menos que tenhamos conhecimento”, diz Levi. Ou seja, este pode bem ser o início de uma história romântica.
Um dos projetos da Mascarenhas-Martins é um documentário – a estrear em fevereiro no Cine-Teatro Joaquim d’Almeida – que tem animado as gentes do concelho. “Já se sente um entusiasmo nos locais. Está a ser feito um documentário sobre a 1.o de Dezembro, uma coletividade com 161 anos que teve uma importância gigante na cidade, essas pessoas estão entusiasmadas. Tal como a Associação dos Pescadores, outra coletividade velhinha… estas pequenas estruturas que sempre deram vida à cidade têm mostrado uma energia positiva em relação a nós, isso apazigua-nos”, relata Maria.
Além desta iniciativa, a companhia promete mais: “Gostávamos de ter dois espetáculos no Cine-Teatro Joaquim d’Almeida. O primeiro deles, a estrear já em março, chama-se ‘Toda a Gente e Ninguém’, escrito por nós e encenado por mim. A ideia é fazer outro original, em novembro, a partir da poesia de uma autora daqui do Montijo que escreve poesia popular e tem uma personagem. Queríamos arriscar fazer um espetáculo daqui, com as pessoas daqui. Gostávamos ainda de continuar com as conversas também, este é também um projeto político”, trata de enquadrar Levi Martins.
Seguiram-se as fotografias e bem sabemos como a especialidade dos fotógrafos é desarrumar. Aqui, além disso, a sessão foi praticamente uma proposta de encenação muito elogiada por Maria Mascarenhas e Levi Martins. Vejamos se chega a ser um espetáculo. A pergunta impõe-se: quem precisa de um palco com uma casa assim?