Era inevitável. Depois do vinténio marcelista, não seriam três meses de abstinência que fariam com que Marcelo abandonasse as homilias dominicais e esquecesse a dimensão lúdica da política. O que ele andou para aqui chegar. Confesso, já me custava ver o triste espetáculo daquilo a que as televisões decidiram chamar “campanha eleitoral”: o olhar vazio do candidato negando-se a mais um doce numa pastelaria de província, o beijinho ofídico em busca sofrida de mais um rosto feminino, o sorriso gozão e condescendente perante os pés de microfone que, à hora combinada, o abraçavam.
E claro, o telefone tocou. Três da manhã. Old habits die hard…
– Meu caro, está bom? Então ainda a pé?
– Não, de todo. Agora, até já estou sentado.
– Não importa, pode ouvir na mesma. Estive a pensar e concluí que é preciso denunciar o que se está a passar. Você consegue imaginar o Marcelo em Belém? Isto é uma conspiração das televisões, o último dos episódios da guerra de audiências. Mais valia votarem na Teresa Guilherme! A Presidência acaba transformada na “Quinta”, com ministros a serem expulsos do governo em direto. Às quintas-feiras, em vez de reuniões do Presidente com o primeiro-ministro, passa a haver televoto, uma espécie de “Agora Escolha” a cores. E eles já perceberam: Guterres não apareceu, Portas fugiu, Passos está morto e ainda não lho disseram, Costa declara-se a favor das primárias de esquerda, o que faz do Marcelo meio candidato da dita. Você não vê o que aí vem? Com o Marcelo na Presidência, o “Independente” poderia ser ressuscitado mas em edição diária! E ele tem tudo pensado, é desta que haverá um presidencialismo a sério em Portugal. Vai haver fornadas de governantes como nem Fontes fez fornadas de pares do reino. A composição do governo do momento será assinalada por um quadro de partidas e de chegadas, como nos aeroportos. Há lá pela faculdade uns jovens com potencial, podem sempre ir-se revezando à esquerda e à direita na liderança dos partidos. Começa-se pelo PSD, que está mais necessitado, mas há que fazer prova de caridade e pensar também no PS. E há que praticar a solidariedade entre as gerações.
Fez uma pausa forçada pelo respirar a custo e fungou, assoando-se. O candidato Marcelo fugiu, à conta da rinite e por breves instantes, aos instintos homicidas do comentador Marcelo. O velho Marcelo estava de volta e, movido pela traquinice e pela impiedade, cepilhava com gosto a sua mais recente criatura.
– E você acredita que há quem me queira afastar do comentário televisivo? Ele nem comícios faz, concorda com tudo e com todos, elogia Tino de Rans como não consegue fazer com nenhum prémio Nobel ainda vivo. Não tem programa, tem “afetos”, discute “o programa” com as crianças de colo perante o enlevo dos adultos babados. O que está no site da candidatura cabe num post-it! Tirou-me o espaço de comentário televisivo, ele bem sabe que comigo na televisão todos perceberiam que esta candidatura não existe, não há programa, não há campanha, não há candidato. Mas como diabo há gente a pensar votar nele?
– E em quem vai votar?
– Não faço a mínima ideia. Uma coisa é certa: não se pode votar no Marcelo! E também não digo em quem vou votar, nunca se sabe quem pode estar a ouvir-nos. Não ouve estes ruídos na linha?
E, no retomar de um clássico marcelista, simulou na perfeição um ruído parasita e desligou o telefone. Fiquei com a sensação de que ainda iria fazer muitas chamadas pela noite dentro. Um Marcelo pode esconder outro.
Escreve à sexta-feira