Adeus a 2015… bem-vindo, 1984!


“Quando não temos guarda que guarde o guarda, entramos no tempo da justiça ‘espiraloide’…”


2015 acabou! Tal como começou: aos trambolhões, arrepelões, confusões.

A melhor forma de comemorar intelectualmente o réveillon é recordar uma jurisprudência de 2015 do Tribunal Constitucional (TC), numa manifestação que, para a minha consciência jurídica, é de total desconsideração pelo dever ser, pelas garantias de defesa… não dos arguidos, mas do ser humano. Sim, que a Constituição da República apenas consagra direitos de defesa dos arguidos, não dos não arguidos, i.e., dos cidadãos, residentes ou simples passantes em geral. Esses não têm, nem tinham de ter, garantias de defesa do art.o 32.o, porque não são arguidos.

Não precisam de as ter porque os art.os 1.o e 2.o CRP reconhecem a dignidade humana, e essa é o suficiente para garantir que todos os “não arguidos” não sejam, sem motivo mesmo muito grave, sujeitos à mais intrusiva, nefasta e insidiosa medida de investigação: a escuta telefónica. Mas com esta jurisprudência, lá se vão os princípios e a dignidade humana.

E tudo isto, não esqueçamos, seja por decisão de um qualquer juiz de instrução criminal, seja por decisão de qualquer entidade de polícia governamental mais ou menos secreta, ou mesmo de funcionários tributários. É que este meio corriqueiro de investigação é usado extramuros do processo penal.

Ora, a partir de 2015 tornou-se direito interpretar o artigo 187.o n.o 1 do Código de Processo Penal “com o sentido de que o juiz de instrução criminal pode autorizar escutas telefónicas a um suspeito, quando, nesse processo, não exista mais do que uma certidão de escutas de outro processo, em que o suspeito não foi constituído arguido” (T. Constitucional, Ac. n.o 381/2015).

Ou seja: um juiz de instrução pode autorizar num determinado processo criminal que “A”, que não é ali arguido, seja escutado, porque do processo consta uma certidão de escutas provenientes de outro processo em que “A” também não foi arguido.

Este “direito” posto pelo TC é preocupantíssimo:

1.o) Como são válidas escutas a arguidos, a suspeitos ou a “pessoa (…) relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido”, então está patente que todas as pessoas que falem com arguidos ou suspeitos podem suscitar dúvidas… e ser escutadas. Logo, o universo abstrato de “escutáveis” num processo é gigantesco… dezenas ou centenas de pessoas!

2.o) Como esses não arguidos nem suspeitos escutados diretamente falam com muita gente que nada tem que ver com os arguidos ou suspeitos do processo “x”, os “escutados acidentais”, também as escutas destes são válidas… e já vamos em milhares.

3.o) Ora, todas estas escutas podem ser usadas no processo “y”, apesar de o estatuto de suspeito, auxiliar do suspeito ou escutado acidental do processo “x” não ter sido suficiente para lá convolar o indivíduo em arguido, e ainda que também neste processo “y” nunca o venha a ser.

Conclusivamente, esta jurisprudência autoriza que seis milhões de adultos portugueses estejam ou venham a estar a ser escutados, já que basta que um crime seja punível com pena superior a três anos para autorizar a escuta. E como se podem transplantar escutas seja de quem for, de que processo for, para que processo se queira, o jogo “espiraloide” da escuta é interminável.

Mas é tudo constitucional. E ainda Orwell se aterrorizava com 1984!

Este artigo foi escrito para a habitual publicação regular, nesta coluna, na sexta-feira dia 1.1.2016.

Advogado, escreve à sexta-feira

Adeus a 2015… bem-vindo, 1984!


“Quando não temos guarda que guarde o guarda, entramos no tempo da justiça ‘espiraloide’…”


2015 acabou! Tal como começou: aos trambolhões, arrepelões, confusões.

A melhor forma de comemorar intelectualmente o réveillon é recordar uma jurisprudência de 2015 do Tribunal Constitucional (TC), numa manifestação que, para a minha consciência jurídica, é de total desconsideração pelo dever ser, pelas garantias de defesa… não dos arguidos, mas do ser humano. Sim, que a Constituição da República apenas consagra direitos de defesa dos arguidos, não dos não arguidos, i.e., dos cidadãos, residentes ou simples passantes em geral. Esses não têm, nem tinham de ter, garantias de defesa do art.o 32.o, porque não são arguidos.

Não precisam de as ter porque os art.os 1.o e 2.o CRP reconhecem a dignidade humana, e essa é o suficiente para garantir que todos os “não arguidos” não sejam, sem motivo mesmo muito grave, sujeitos à mais intrusiva, nefasta e insidiosa medida de investigação: a escuta telefónica. Mas com esta jurisprudência, lá se vão os princípios e a dignidade humana.

E tudo isto, não esqueçamos, seja por decisão de um qualquer juiz de instrução criminal, seja por decisão de qualquer entidade de polícia governamental mais ou menos secreta, ou mesmo de funcionários tributários. É que este meio corriqueiro de investigação é usado extramuros do processo penal.

Ora, a partir de 2015 tornou-se direito interpretar o artigo 187.o n.o 1 do Código de Processo Penal “com o sentido de que o juiz de instrução criminal pode autorizar escutas telefónicas a um suspeito, quando, nesse processo, não exista mais do que uma certidão de escutas de outro processo, em que o suspeito não foi constituído arguido” (T. Constitucional, Ac. n.o 381/2015).

Ou seja: um juiz de instrução pode autorizar num determinado processo criminal que “A”, que não é ali arguido, seja escutado, porque do processo consta uma certidão de escutas provenientes de outro processo em que “A” também não foi arguido.

Este “direito” posto pelo TC é preocupantíssimo:

1.o) Como são válidas escutas a arguidos, a suspeitos ou a “pessoa (…) relativamente à qual haja fundadas razões para crer que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido”, então está patente que todas as pessoas que falem com arguidos ou suspeitos podem suscitar dúvidas… e ser escutadas. Logo, o universo abstrato de “escutáveis” num processo é gigantesco… dezenas ou centenas de pessoas!

2.o) Como esses não arguidos nem suspeitos escutados diretamente falam com muita gente que nada tem que ver com os arguidos ou suspeitos do processo “x”, os “escutados acidentais”, também as escutas destes são válidas… e já vamos em milhares.

3.o) Ora, todas estas escutas podem ser usadas no processo “y”, apesar de o estatuto de suspeito, auxiliar do suspeito ou escutado acidental do processo “x” não ter sido suficiente para lá convolar o indivíduo em arguido, e ainda que também neste processo “y” nunca o venha a ser.

Conclusivamente, esta jurisprudência autoriza que seis milhões de adultos portugueses estejam ou venham a estar a ser escutados, já que basta que um crime seja punível com pena superior a três anos para autorizar a escuta. E como se podem transplantar escutas seja de quem for, de que processo for, para que processo se queira, o jogo “espiraloide” da escuta é interminável.

Mas é tudo constitucional. E ainda Orwell se aterrorizava com 1984!

Este artigo foi escrito para a habitual publicação regular, nesta coluna, na sexta-feira dia 1.1.2016.

Advogado, escreve à sexta-feira