Manuel Correia. O português que conquistou o Kilimanjaro

Manuel Correia. O português que conquistou o Kilimanjaro


Depois de correr mundo o fotógrafo Manuel Correia sentiu o apelo de África. Mais precisamente do Kilimanjaro. A mais difícil das subidas está agora relatada no seu mais recente livro.


Aos 49 anos, Manuel Correia já viajou um pouco por todo o mundo: América Latina, Ásia, África. E foi precisamente durante os seus projetos no continente africano que o fotógrafo natural de Braga sentiu germinar o desejo de subir o Kilimanjaro. “Esta ideia de uma África muito plana e depois haver ali um monte com quase 6000 metros, com neve lá em cima, era uma coisa que me fascinava. E no ano passado decidi que era altura”.

Durante os meses anteriores preparou-se fisicamente, até porque «40% das pessoas que tentam a subida não chegam lá acima». Fez caminhadas nas montanhas do Norte e passou três dias nos Picos de Europa (Astúrias), para «treinar acima de tudo dos zero aos dois mil metros e perceber como reagia o corpo». Ainda para mais, sendo fumador – “de poucos cigarros”, esclarece – “queria ir com alguma condição física que permitisse fotografar com calma”.

A primeira surpresa Situado na fronteira da Tanzânia com o Quénia, o Kilimanjaro – palavra masai que significa “montanha branca” – é um vulcão extinto e atinge 5895 metros acima do nível do mar, o que faz dele ponto mais alto de África. Ao chegar ao “Evereste africano”, o fotógrafo deparou-se com a primeira surpresa. “Houve uma questão que me chamou logo a atenção, os carregadores”, revela. “Tinha esta ideia de que eles eram um bocado escravizados, que levavam 50, 60 quilos às costas, mas não. Só podiam levar 15 quilos. Eram pesados à entrada dos campos e se levassem nem que fosse mais uma batata tinham que parar. Existe ali uma dignidade muito forte e um respeito muito grande”.

É por isso que cada turista que queira subir o Kilimanjaro tem de levar três carregadores por sua conta. Além deles, são obrigatórios um guia e um cozinheiro por comitiva. Manuel, embora tenha viajado apenas com um amigo, preferiu não arriscar e levou um staff ainda mais completo. «Muitas vezes um grupo está quase a chegar ao topo e três pessoas estão fisicamente muito bem mas há uma que ficou mal e, como só resta um guia, têm de voltar todos para baixo. Por essa razão levámos dois guias: se algum de nós se sentisse mal, regressaria e o outro continuava”. Completavam o staff um cozinheiro e empregado de mesa e um assistente para ajudar a carregar o material fotográfico.

Cabeça vazia “no bom sentido” O percurso escolhido foi um dos mais longos, para tirar proveito da caminhada e reduzir ao mínimo a hipótese de insucesso. «Escolhi uma das rotas mais demoradas para fazer uma ascensão lenta. Subíamos e descíamos e voltávamos a subir e descer para nos irmos adaptando. Não tive uma única dor de cabeça – e estava a contar com elas. Ao fim do terceiro ou quarto dia senti a cabeça completamente vazia, vazia no bom sentido – uma sensação de liberdade, de meditação, de contemplação, que nunca me tinha acontecido. Aquilo gradualmente foi tomando conta de mim. É uma coisa de uma profundidade que não tem explicação», conta o fotógrafo.

Dormir com sete camisolas Durante o dia, caminhavam entre quatro e oito horas, o que deixava tempo livre para momentos de solidão, mas também para conversar e conviver. “Andávamos de calções, impecavelmente, estava uma média de 20 graus”, explica Manuel. Mas assim que o sol desaparecia a temperatura caía de maneira abrupta e o frio fazia-se sentir de forma intensa no interior da tenda. “Cheguei a dormir com sete camisolas polares e houve um dia em que ainda tive de vestir um blusão de penas para conseguir adormecer. Facilmente apanhamos ali temperaturas de 10, 12, 13 graus negativos. Se me perguntar o pior da viagem, foi mesmo o frio”.

Um presente da natureza Nada que não fosse plenamente compensado pelo prazer da subida. E de ver África a partir do seu ponto mais elevado. “O ataque ao cume é feito de noite, para que toda a gente veja o nascer do sol e todo o esplendor de África lá de cima”, explica Manuel Correia. “Tivemos a sorte de apanhar a lua cheia, com o céu estrelado muito bonito”. Atingido o cume, o fotógrafo ficou fascinado com o que viu. “Quando ainda está muito escuro, aparecem umas barras vermelhas onde vai nascer o sol, uma coisa um bocado lunática, um presente da natureza. Depois, estar no meio dos glaciares com aquela luz da madrugada, aquela luz meia rosa ainda, para mim foi uma novidade excecional”.

Tão excecional que o fotógrafo não queria sair. ”Fisicamente estava espetacularmente bem, e o guia dizia-me ‘Manel, temos de ir para baixo’. Acredito que pela minha adrenalina não sentisse o cansaço, mas a seis mil metros a respiração começa a ficar complicada. Por isso é que os guias nunca querem passar mais de meia hora lá em cima”.

Operação-relâmpago O resultado desta experiência está plasmado num livro, “Kilimanjaro and Porters”, editado pela Caminho das Palavras. Manuel Correia viajara em lazer – “longe de mim a ideia de fazer uma publicação”, revela – mas acabou por ceder aos pedidos insistentes de amigos. “Foi uma espécie de operação-relâmpago: cheguei a Portugal, decidi avançar com isto, entretanto fui para o Brasil e quando regressei de novo o livro já estava pronto”.

Entretanto, o fotógrafo pretende terminar outro projeto que iniciou há três anos, quando foi fazer um trabalho sobre as minas do Norte de Angola e descobriu “a questão dos sobas e dos reinados”. “Está a demorar muito tempo porque é difícil chegar às pessoas, saber quem é quem. Além disso país é grande, as estradas são difíceis, e está ser um desafio extraordinário. África é cansativo – pelas pessoas e por todos os truques que têm entre eles”. Ainda assim, continua, “dos trabalhos que fiz até hoje é daqueles de onde estou a tirar mais sabedoria”.

“Não largues a máquina!” Quando se trabalha em África, nem tudo são rosas para um fotógrafo profissional. “Em África eles têm um bocado aquela ideia que acham que intimidam o branco – e uma grande parte das vezes conseguem. Acham que as pessoas têm medo deles, porque são altos, fortes. E se a pessoa se deixar leva está tudo estragado”.

Manuel recorda um episódio que se passou à entrada para o Congo há cerca de dez anos. “Tive uma arma apontada para dar a máquina e não dei, porque um amigo mais experiente deu um berro e disse “Não largues a máquina!”. Se a máquina desaparece nunca mais aparece. Não a entreguei, mas passei uma hora um bocado mal. Mesmo depois de ele me largar, fiquei ali um bocado em que mal respirava”. E dá um conselho: não vacilar. “Se dermos o braço a torcer no primeiro impacto perdemos o controlo da situação. Mas se tivermos uma postura dura, ao fim de meia hora a coisa começa a mudar”.

jose.c.saraiva@ionline.pt