Há palavras injustas. Que não merecem ser ditas, que o são porque se exige que assim seja. Que nascem tortas ou curtas porque no seu lugar a única palavra que queríamos era: silêncio. David Bowie morreu. O artista não resistiu ao cancro com o qual se debateu durante 18 meses e, três dias depois de editar o seu último disco “Blackstar” e de assinalar 69 anos de vida, morreu, rodeado da sua família, neste domingo.
Foi Duncan Jones, filho do britânico, quem deu ao mundo, através do Twitter, um acordar desamparado. O anúncio foi feito na madrugada de ontem, mais precisamente às 06h30 portuguesas: “David Bowie morreu hoje tranquilamente, rodeado da sua família, depois de uma corajosa batalha contra o cancro durante 18 meses. Enquanto muitos de vós partilham esta perda pedimos que respeitem a privacidade da família durante o seu tempo de luto”, escreveu. O camaleão, símbolo maior da irreverência e criatividade, figura díspar da cultura popular, parece ter decidido morrer genialmente. David Bowie em toda a vida o foi, é, uma obra-prima.
David Robert Jones nasceu a 8 de Janeiro de 1947 em Brixton, Londres. Filho de um homem ligado a uma fundação de solidariedade e de uma empregada de café, David Bowie cedo se revelou uma estrela, que o digam as suas professoras da Burnt Ash Junior School, em Bromley, que o qualificaram como “assombroso” nas várias pequenas apresentações que sempre se fazem na escola. Uma criança de nove anos não costuma ser apelidada de artista – capaz de deixar uma plateia de pais atarefados agarrada à cadeira, sem perceber bem o motivo. Agora torna-se fácil adivinhar.
Nem o seu pai nem o seu meio-irmão podiam antever o que se seguiria após terem-no introduzido, de alguma forma, à música. O primeiro, em 1953, trouxe para casa uma coleção de discos onde se incluíam nomes como Elvis Presley ou Little Richard, dois artistas determinantes para um miúdo à procura de um lugar para onde atirar a sua genialidade. Se foi após ver uma prima tímida – quase amorfa – a dançar livremente “Hound Dog” de Elvis que Bowie começou a adquirir discos, foi através de “Tutti Frutti”, de Little Richard, que Bowie mais tarde diria: “Tinha ouvido Deus”. Com o meio-irmão, Terry Burns, veio o jazz, veio John Coltrane, veio Charles Mingus, veio um saxofone de plástico, presente da mãe. Tudo se compunha.
A década de 60 foi, para muitos, tempo de grande proveito, foi Santana a solar no Woodstock, para Bowie foi como uma parede onde sempre esbarrou. Formou a sua primeira banda aos 15, The Konrads. O entra-e-sai em bandas viria a acentuar-se: The King Bees, Manish Boys, Lower Third, The Buzz, Riot Squad. Conjuntos situados entre o jazz e os blues com os quais o cantor nunca foi além de um single, nunca atingiu o reconhecimento. Até aqui Bowie era simplesmente Davy (ou Davie) Jones, algo que viria a gerar alguma confusão a propósito de Davy Jones, membro dos bem-sucedidos, à época, The Monkees. Bowie refere-se a Jim Bowie, herói norte-americano que foi preponderante na Revolução do Texas (1835-36) e que virou culto nacional pela sua bravura – e pela forma como se diz que matava qualquer adversário com a sua Bowie knife. Era tempo de correr para o lugar que lhe pertencia, a solidão, e uma carreira onde fez quase tudo por sua conta e mérito.
Em 1967 editou “David Bowie”, primeiro de 25 discos, sem relevante sucesso. Decidiu abrandar e ser mimo, estudar dança e explorar outros recantos da sua insanidade – que sempre nos deu coisas boas. Voltou em grande das sessões de dança com Lindsay Kemp e editou “Space Oddity” (1969). Seguiram-se “The Man Who Sold the World” (1970) e “Hunky Dory” (1971), tudo isto antes do genial – e para muitos o melhor – “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars” (1972).
O espaço neste texto fica curto para mencionar todos os seus discos, alter-egos, todos os seus feitos que no fundo foram só um: fazer o que ainda ninguém tinha feito. Pensemos em temas como “Let’s Dance”, em imagens como a capa de “Aladdin Sane”, em telediscos como o recente “Lazarus”, em roupas tão estranhas como em “Space Oddity”. Apesar dos inúmeros rostos que lhe vimos, de ter feito blues e rock e pop e eletrónica, David Bowie foi sempre o mesmo. Defendemos que a palavra experimentalismo nasceu com ele. E como o produtor e amigo Tony Visconti escreveu no seu Facebook: “Ele era um homem extraordinário, cheio de amor e de vida. Estará sempre connosco. Por agora, o apropriado é chorar”. Façamo-lo.
Curiosidades
A primeira digressão foi a Ziggy Stardust Tour, em 1972, e a última a Reality Tour, em 2003/04. No total, Bowie fez 14 digressões, com 1025 concertos.
Ao longo de 53 anos de carreira vendeu 140 milhões de álbuns. O single mais bem sucedido foi “Let’s Dance”, com 8 milhões de cópias vendidas.
Nas primeiras sete horas após o anúncio da sua morte, o Twitter registou cerca de 4.3 milhões de tweets.
“Space Oddity”, de 1969, foi o primeiro sucesso de Bowie em Inglaterra. A BBC usou o tema como banda sonora para a chegada do homem à lua.
Foi uma luta com um amigo, ainda na infância, que lhe valeu a condição clínica que dilata as pupilas e provoca a ilusão de alteração de cor. Em causa estava uma rapariga.
Casou pela primeira vez em 1970, com Mary Angela Barnett. Em 1992 casou com a top-model Iman. Tem dois filhos, Duncan e Alexandria, respetivamente de cada união.
Em 2009 uma aranha descoberta na Malásia foi batizada Heteropoda Davidbowie. Uma homenagem a “The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars”.
A sua imagem consta da capa de todos os seus álbuns, exceto de “Blackstar”. Este álbum, lançado dia 8, atingiu o número 1 ontem, com 43 mil cópias vendidas.