Onde os sonhos vão morrer. Um mês num call center

Onde os sonhos vão morrer. Um mês num call center


Um mundo onde não existem senhoras, mas sim senhoras donas. Onde não existe assiduidade, mas aderência.


Onde os contratos são mensais e renováveis automaticamente. Onde as pausas são de dez minutos e contabilizadas ao segundo. Onde a palavra altitude não significa a distância vertical entre um ponto e outro. Bem-vindos ao mundo dos call centers, onde os sonhos vão morrer – ou ficam adormecidos por uns tempos. Uma experiência contada na primeira pessoa.

Uma senhora atende o telefone. Apresento-me: “Bom dia, fala Pedro Garcia, da parte do banco X. A senhora está interessada em conhecer mais detalhes deste produto de crédito?” A resposta: “Não posso, porque estou desempregada, eu e o meu marido, e não podemos contrair créditos…” Ou então: “Não me aborreça que não estou interessado! Já é a terceira vez que me ligam esta semana!” Ou: “Estou a almoçar. Vocês aí em Lisboa não almoçam?” A minha presença de espírito só me deu oportunidade de replicar: “Sabe, é que aqui em Lisboa somos mais flexíveis…” E desligou.

Milhares de pessoas trabalham atualmente em call centers em Portugal. Sítios com reputação de precários, mal pagos, abusivos. Resolvi “infiltrar-me” durante um mês, num part-time, num contact center (como agora preferem ser chamados). Esta é a minha experiência.

Primeiro dia Depois de um processo de recrutamento que consistiu em enviar um email e numa entrevista curta, uns dias antes de me estrear – tão simples e fácil como isto –, dei por mim a entrar no edifício e na sala de formação. Olho à minha volta e reparo nas pessoas que estão sentadas. Começo a observar os meus colegas: duas mulheres nos 40 anos, miúdas na casa dos 22, 23 anos que, mais tarde, venho a descobrir estarem a acabar as licenciaturas ou os mestrados, um quarentão cheio de bazófia, um génio da matemática de 20 e poucos anos (reparei logo no casaco do curso da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa), um rapaz magrinho, de ar muito ingénuo. Colegas que tinham todo o ar de estarem resignados com a sua sorte – isto é, a do call center –, para uns claramente temporária, para outros nem por isso.

Uma semana de formação A formação prolonga-se por uma semana, quatro horas por dia. Nestas horas passadas numa sala assética, uma formadora leciona os diferentes truques que devemos decorar quando começarmos a operar. Aprendemos que os clientes devem ser encaminhados por nós de forma a aceitarem um “agendamento” de uma reunião numa “sucursal”, para depois os gestores de conta angariarem créditos. A formadora vai-nos ensinando como dar a volta aos clientes: frases no presente (“pode” em vez de “poderá”), a ausência da palavra “não” e derivados, a forma como devemos dirigir-nos às pessoas. “Senhora”, nunca. “Senhora dona” – e nunca falhar os “dr.” e “eng.o”, tanto para homens como para mulheres.

Ouvimos exemplos de chamadas que correram mal, nas quais os clientes eram identificados, gente que nunca suspeitaria que as chamadas que receberam estariam naquele momento a ser utilizadas por um call center para efeitos de formação. Aprendemos também que um dos passos do protocolo seria pedir autorização ao cliente para se proceder à gravação da chamada, “por razões de segurança”.

Um dos exemplos dados é: o que diriam se um reformado nos revelasse ter uma reforma pequena e, por essa razão, não querer créditos por não poder pagá-los? Silêncio. Compreender a situação, despedirmo-nos e desligar o telefone? Não, é preciso “rebater”: “Podem sempre dizer que um crédito pode ser útil para fazer uma viagem.” “Mas não vamos parar ao inferno por impingir créditos a reformados pobres?”, disse eu a uma colega. Ela encolheu os ombros e sorriu, resignada.

3,75 euros à hora A nossa (pouca) motivação vinha do facto de nos terem dito que estavam previstas comissões por cada agendamento de crédito, a acrescentar ao nosso salário-base de 3,75 euros à hora, depois de nos terem alterado a remuneração original de cerca de 4 euros devido a um “erro dos recursos humanos”. Mais: já sabíamos que íamos ser pagos a recibos verdes, o que implicava pagamentos avultados para muitos às Finanças e à Segurança Social.

À espera de compor o parquíssimo salário, aguardamos a visita do gestor da campanha para nos esclarecer sobre a melhor parte: o dinheiro. Um dia, ele interrompe a formação e chega, com a sua gravitas de gestor, para nos contar um pouco da sua história. Diz-nos, com um bocadinho de bazófia, que começou a trabalhar num call center por “brincadeira” quando andava na universidade e que, uma semana depois, estava no top- 3 dos melhores vendedores. Tinha uma camisa bem engomada e umas calças de ganga de marca. Este não está de certeza a recibos verdes, pensei. Passemos à frente – comissões, perguntamos. Por cada agendamento, uma comissão. “De quanto?”, inquirimos, ansiosos por nos livrarmos do triste destino dos 3 euros por hora. “De 30 cêntimos”, respondeu, que poderiam levar um corte de 33% se falhássemos algum dos 22 critérios de qualidade. Tratar a dra. Maria de Lurdes por engenheira faria com que esta pequena esmola se evaporasse.

Aderência ao trabalho O nosso gestor realçou a necessidade de “vocês terem aderência” ao trabalho – “não podemos dizer assiduidade porque estão a recibos verdes” –, insinuando penalizações a quem faltasse, a quem chegasse tarde e a quem, na verdade, se estivesse nas tintas. Na minha mente estavam os 120 euros de contribuição para a Segurança Social que teria de pagar, mais o seguro de trabalho, suportado por mim, e a caução do cartão de ponto, para além de me cortarem o salário ao minuto se chegasse atrasado. Apeteceu-me (nos) gritar.

Começo a fazer chamadas. Uma semana depois do arranque da formação, todos começam, empolgados, a fazer as primeiras chamadas numa sala cheia de gente, com cerca de 30 pessoas dedicadas ao mesmo cliente, inclinadas sobre os computadores, com uns headphones que descobri chamarem–se headsets e com um burburinho permanente que ia subindo e descendo constantemente de tom. Há um sistema de “bandeirinhas” postas nas secretárias de cada vez que se faz uma marcação. Os novatos começam logo a competir de forma mais ou menos amigável. Também eu começo a fazer chamadas. Ao início, limitava-me a ler o “guião”, com todos os passos para falar com o cliente, desde o “bom dia” ao “tive muito gosto”, com obrigações legais pelo meio. Mas rapidamente percebi o quão desgastante é este trabalho. As chamadas não param de cair e repetia a mesma litania centenas de vezes. Uma semana depois – e só fazia um part-time de quatro horas diárias –, senti que ganhava vícios de linguagem e que, à medida que ia repetindo centenas de vezes a mesma conversa, esta perdia cada vez mais o sentido.

– Senhora dona qualquer coisa, já pensou em adquirir um produto ou realizar um projeto pessoal?

– Não estou interessada.

– Se me permite a questão, senhora dona qualquer coisa, concorda comigo que este produto poderá ser uma boa solução na eventualidade de algum problema futuro?

– Não estou interessada, desculpe lá.

Pausa de dez minutos Só tínhamos dez minutos de pausa, contabilizados ao segundo, que se esfumavam num fósforo: não davam para descer as escadas, beber café, fumar um cigarro, ir à casa de banho e subir as escadas outra vez. Esperava-nos sempre uma penalização mal voltássemos a fazer login no Altitude, o software que nos lançava para o negro e repetitivo mundo do telemarketing. Mal chegados à sala, de novo a mesma saga: chamadas, chamadas, chamadas. O meu colega do lado, craque em matemática, resolvia jogos numéricos enquanto esperava pelas chamadas. Quando nos aparecia uma mensagem de voice mail, rejubilávamos: significava que podíamos ouvi-la até ao fim e descansar um pouco até à chamada seguinte.

O ambiente é bom, na verdade – estava à espera de pressão constante e de gente a chorar na casa de banho, um autêntico campo de concentração. Contudo, à medida que ia falando com os meus colegas nas pausas para café, o verniz de suposta satisfação ia estalando, e inevitavelmente começavam os queixumes e os desejos de, algum dia, sair dali. Muitos trabalhavam para pagar cursos superiores e outros já os tinham concluído. Um rapaz de aspeto tristíssimo, encostado a um canto da zona de fumadores, de poucas palavras, conversava connosco numa manhã antes de entrarmos e revelava-nos que já ali estava havia um ano e aguardava o fim do curso para dizer adeus. Muitos aguentavam o máximo que podiam enquanto acabavam as licenciaturas ou os mestrados em áreas como turismo. Outra rapariga estava ali há dois anos e já ascendera a supervisora.

Supervisão Um cargo que implica ouvir chamadas, analisá-las, apontar os erros feitos pelas equipas e dar apoio constante aos operadores. Averiguei que, apesar de estarem um grau acima na cadeia alimentar do call center, isso não os beneficiava por aí além: ganhavam o salário mínimo a contrato – um luxo –, ao qual acresciam as comissões pelo trabalho bem feito dos operadores. Para chegar a supervisor, bastava ser uma “máquina” nas vendas, segundo o que apurei junto de colegas.

Campanha suspensa Ouço histórias de vida em quatro horas. Numa manhã, uma semana depois, a “campanha” tinha sido “suspensa”: um grupo de trabalhadores aterrorizados começaram a especular sobre as razões. Teria acabado a base de dados (um péssimo sinal porque, supostamente, nos mandariam para casa sem receber por uns dias)? A supervisora sénior, a polícia má do piso, a que estava sempre a um canto a olhar para todos com ar desconfiado, informou-nos que a entidade estava “a receber imensas queixas de clientes” que estavam a receber contactos indesejados. A partir dali, disse, iriam deixar de insistir agressivamente até que começássemos uma nova campanha, supostamente mais agressiva. À medida que o mês se ia aproximando do fim, senti-me enlouquecer. Num part-time chegava a fazer 200 chamadas em 4 horas para auferir pouco mais de 16 euros, sem descontos. Os meus colegas em full-time confidenciavam-me que não iam aguentar muito mais, sempre a repetir as mesmas frases. Lidávamos com todo o tipo de pessoas. Umas contavam-me a vida e comoviam-me com o rol de desgraças que desfiavam. Outras revoltavam-se contra a entidade pela qual dávamos a voz, que, diziam, os tinha “roubado”. Outros, mais rústicos, não percebiam rigorosamente nada do que lhes estávamos a apresentar.

As baixas Nas pausas-relâmpago que tínhamos, um rapaz dizia-me que muito poucos iam sobrar da leva que tinha entrado connosco. Ninguém fica aqui muito tempo a receber 600 euros a recibos verdes, dizia ele. E a verdade é que já tínhamos três baixas: uma rapariga foi-se embora mesmo antes de começar a falar com clientes, outras duas desistiram e nunca mais apareceram. O meu colega vaticinava que muitos mais se seguiriam. E eu não conseguia deixar de pensar que a retenção não constituía problema absolutamente nenhum para a empresa: haveria sempre mais gente para render os que saíam… Para além de que, dizia-se, algumas pessoas eram liminarmente despedidas pela supervisão logo depois de uma ou duas chamadas, por razões diversas, sempre justificadas com a suposta inabilidade dos novos operadores.

O adeus Digo adeus, até um dia (ou então não). Já farto, via o fim do mês aproximar-se e não me saía da cabeça uma dúvida que me revoltava: mas não haverá aqui nenhum operador com um contrato de trabalho, um vínculo minimamente dignificante que não trate as pessoas como puras ferramentas dispensáveis a qualquer momento? Resolvo abordar a supervisora-chefe, muito mal encarada, e invento uma história sobre ter tido um convite de outro sítio “a contrato”. Disse-lhe que adorava estar ali “por causa do ambiente” e perguntei-lhe se seria possível oferecerem-me também um vínculo mais estável. A resposta foi, claro, negativa. Puxei por ela: mas não há nenhum operador neste edifício a contrato? A resposta, após dois segundos de silêncio: “Não creio.” Assinei uma carta de rescisão escrita pelo meu próprio punho e saí do edifício. Recebi mais tarde as contas finais por email, com as horas trabalhadas e respetiva remuneração por minuto: excluindo três dias em que faltei por outros motivos, e a semana de formação, auferi pouco mais de 180 euros brutos.

O inevitável balanço Não fui maltratado, o ambiente era bom, não havia atritos de maior, mas as condições estavam longe de ser ideais: recibos verdes, remuneração baixa, trabalho muitas vezes intensivo e repetitivo. Fui-me embora, não sem um suspiro de alívio. Creio que nunca mais voltarei a irritar-me com operadores de call center – ou a tratar alguém por senhora dona.