O “terrível Ângelo”: foi assim que Passos se referiu ao seu padrinho político num congresso do PSD, no tempo em que a relação entre os dois era sólida. Acusavam Passos de ter o apoio do “terrível Ângelo”. Só que esse apoio rapidamente acabou e a amizade também ficou afetada. Ângelo Correia acha que Passos continuará líder mas que Rio, se tiver ambição, deverá candidatar-se já nas próximas diretas, antes do congresso. Portas fez bem em retirar-se e poderá ser Presidente da República daqui a dez anos.
Quando conheceu Pedro Passos Coelho?
Em 1981/82, mas em bom rigor conheci-o melhor a partir de 1984/85. Pedro Passos Coelho era o porta-voz da JSD e a direção do partido delegou em mim a decisão das matérias na área militar. O primeiro contacto que tivemos foi a propósito do serviço militar obrigatório. A JSD adorava tudo aquilo que não desse trabalho à juventude e eu sempre defendi que o serviço militar obrigatório era a forma mais democrática de os portugueses participarem num esforço que era, ao mesmo tempo, um direito e um dever.
Como era Passos Coelho há 25 anos?
Era o líder da JSD, com causas muito próprias da juventude partidária, com uma grande preocupação com o sistema de ensino. Era uma pessoa empenhada, motivada.
E como se tornaram amigos?
Foi o acaso da história. E talvez a necessidade. Há amizades que se cimentam pela vivência de problemas comuns; há amizades que se estabelecem por necessidades.
Que tipo de necessidades?
Não sei. Há coisas que nunca sabemos bem. Acontecem.
O senhor aparece como o padrinho político de Passos Coelho.
Já ouvi isso.
Ajudou-o muito.
Ajudei-o. Ajudei-o muito.
E ajudou-o também a chegar ao poder.
Também.
Como?
Emprestando o meu nome, em muitos casos. A uma pessoa que era um jovem prometedor, mas que não era conhecido.
E depois desiludiu-se com ele muito cedo, logo no início do mandato?
Ele tinha um rumo diferente do meu em aspetos que eu considerava essenciais para a governação.
A que aspetos se refere?
Várias coisas. Muitas coisas. E, como tal, seguiu o seu caminho e eu respeitei-o. Ele tinha o direito e a legitimidade de fazer como queria, mas isso não correspondia ao que eu achava que era necessário.
A vossa relação de amizade ficou afetada?
Fica sempre, sobretudo quando tem uma envolvência política muito forte.
Falaram muito nos últimos quatro anos e meio?
Apenas algumas vezes. Densamente.
Passos é candidato à liderança do PSD. Faz bem em manter-se como líder?
Pedro Passos Coelho vai ser o próximo líder do PSD. Não vai ter oposição. Se, todavia, pensar no congresso seguinte, daqui a dois anos, já não tenho essa mesma certeza.
Vai conseguir aguentar estes dois anos até ao congresso seguinte?
Pode ser que haja algum convite para ele ir para algum lugar em Bruxelas.
Passos Coelho é o líder que serve os interesses do PSD neste momento?
Pedro Passos Coelho foi presidente do partido e primeiro-ministro para cumprir um programa mais ou menos imposto pela troika, com alguma sedução da parte da própria coligação por esse programa. Portanto, há aqui uma questão essencial que o futuro nos vai dizer: qual é o grau de adesão do PSD a esse programa? Foi uma imposição ou foi uma adesão emotiva, racional e consciente a um programa que correspondia também ao que o PSD partilhava?
Mas esse era o discurso de Passos.
É isso que vamos ver no futuro. Se esse discurso, hoje em dia, corresponde ao discurso de há quatro anos. É uma questão que iremos averiguar nos próximos tempos para percebermos a adesão.
E já há sinais?
Ainda não. A não ser talvez um. Durante 2015, Pedro Passos Coelho e o PSD fizeram um discurso de relativa demarcação em relação a esse programa, enunciando a sua necessidade, a sua indispensabilidade, mas sem colocar a questão da sua própria crença em relação ao programa. Uma questão é ser indispensável, outra é aderirmos emocional e racionalmente a um programa que pode não ser aquele em que acreditamos, mas somos obrigados a executar.
Porque não tem Pedro Passos Coelho oposição no próximo congresso?
Os aparelhos partidários são sempre uma forma de expressão de uma certa inércia. Ou de satisfação de interesses próprios. Nesta fase, em que não é previsível tão rapidamente quanto possível que o PSD chegue ao poder a curto prazo, ou talvez no médio prazo, não se torna essencial a perceção da necessidade de alguém que dirija o partido para regressar ao poder rapidamente.
Até quando?
Depende do grau de consistência que nós encontramos na união da esquerda. Em Portugal, e até este momento, houve uma bipolarização exercida de um lado, não do outro. Quanto mais forte é a polarização que o centro-direita exerce, ou seja, a coligação PSD/CDS, mais fortemente se faz sentir à esquerda essa mesma necessidade de polarizar. A resposta de António Costa é uma resposta simultaneamente tática, conjuntural e preenche um vazio que existia na esquerda, que era a perceção de que a esquerda nunca governaria com uma polaridade à direita muito forte. Como tal, houve a necessidade de criar essa unidade de esquerda, não só para o exercício do poder, mas para a afirmação da própria bipolaridade. Senão, era uma unipolaridade.
António Costa ganhou aí?
Foi o artífice de algo que correspondeu a um vazio da bipolarização. O que não sabemos ainda é qual o grau de maturidade que ela tem, qual o grau estrutural a longo prazo. Sabemos duas coisas e a situação é difícil. Com o PCP, julgo que serão sempre percetíveis duas realidades: o PCP pode ter com o PS e o BE convergências táticas, mas não convergência estratégica. E quando se fala numa certa união de esquerda, isto é, numa certa capacidade de criar uma ligação mais ou menos permanente a longo prazo, não se pode falar apenas de objetivos táticos, também temos de falar em objetivos estratégicos. Com o PCP, tal é impossível porque o PCP viverá sempre de algo que tem em exclusivo, que é o aparelho sindical muito forte, cujos interesses precisa de satisfazer. Por outro lado, tem uma visão ideológica que é mantida, não sei se natural, se artificialmente, mas que inibe até certo ponto uma ligação permanente à esquerda democrática.
Viu-se isso com o orçamento retificativo por causa do Banif.
Ver-se-á em muitos momentos, que servirão exatamente para o PCP resolver problemas essenciais ao seu aparelho sindical, acima de tudo. Em segundo lugar, o Bloco de Esquerda é, apesar de tudo, mais fácil, porque o BE não tem uma ideologia suficientemente expressiva e expressa. Como tal, é mais maleável e plasmável a um conjunto de realidades.
A geringonça, como lhe chama Paulo Portas, durará até final da legislatura?
Não lhe chamaria geringonça. Chamar–lhe-ia um acordo que permite ao PS governar com apoios de natureza eminentemente tática e que tem um cimento aglutinador que não é ideológico mas emocional: o rancor, a atitude emocional negativa contra o bloco entre o PSD e o CDS. Eles estão juntos não por eles, mas por diferenças em relação aos que lá estavam antes. Têm uma relação sobretudo emocional. Que às vezes é poderosa, mas que se extingue na exata medida em que se perceber que do lado de lá pode deixar de existir o inimigo – inimigo nas palavras deles, não nas minhas.
Portas já saiu de cena.
Portas já saiu de cena. Depende da debilidade ou não ou da credibilização ainda maior do PSD. Isso faz unir aqueles que não têm um objeto político consitente, firme, permanente, mas apenas de natureza conjuntural.
Como viu a saída de cena de Paulo Portas?
É uma atitude lógica e correta. Paulo Portas estava há muitos anos como presidente do CDS e percebeu que ia ser sempre o número dois de Passos Coelho ou de alguém que o substituísse. Portas talvez não se sentisse muito confortável com essa situação de ser número dois.
E acha que ainda pode ser número um?
Pode. Daqui a dez anos. Pode ser candidato presidencial.
E pode aglutinar a direita?
Essa é outra questão. Porque em termos de capacidade política, inteligência, argúcia, cultura política, imagem, relação comunicacional existiram poucos políticos em Portugal como Paulo Portas. Só que o conjunto de ações que ele desenvolveu ao longo da vida política criou--lhe também bastantes ónus e não sabemos ainda como é que esses ónus são cicatrizáveis e, depois, se a cicatriz desaparece com o tempo.
Paulo Portas não tirou o tapete a Passos Coelho?
Não. Pelo contrário. Acho que Passos Coelho teve uma atitude muito positiva. Defendi antes mesmo de acabar a coligação que a partir do momento em que não ganhasse as eleições – isto é, tivesse a maior votação mas não a votação suficiente para construir um governo sólido e estável na Assembleia da República –, a coligação não fazia sentido. Acho que desfazer a coligação, ou seja, o PSD afastar-se do CDS, pode ter alguma vantagem. Até para um dia os dois perceberem que talvez precisem de se unir. A ligação do PSD ao CDS faz-se na exata proporção em que se mantiver a união de esquerda. Se ela não se fizer, também não se faz à direita. Ou seja, uma é recíproca da outra. São almas siamesas. Precisam uma da outra.
Mas isso não garante automaticamente uma maioria nos próximos tempos?
Não sei. O que sei é que talvez precisem de estar juntos.
Rui Rio alertou recentemente para o fato desta liderança do PSD ter muitas dificuldades em conseguir reeleger-se para formar governo.
Acho que o Rui Rio é uma pessoa com méritos, com qualidades. Tenho pena que ele se tenha empenhado excessivamente na campanha presidencial e não tenha saído dela mais cedo. Porque é o mesmo problema de Cavaco Silva. Ele não é um candidato presidencial. Mas é uma pessoa que pode ser líder do PSD – pode. Disse-o há quatro anos numa entrevista, quando Passos Coelho tinha acabado de ser eleito. Perguntaram-me: quem é o sucessor? E eu respondi: talvez Rui Rio.
E acha que ele já está preparado para isso?
Acho que tem muita gente à volta dele que o pressiona para isso. Não sei qual é o estado de alma dele.
O que falta para Rui Rio avançar?
Ter reais condições nacionais para poder avançar.
Que condições?
Para se ser candidato ao poder é preciso sabermos o que queremos fazer do poder. Podemos fazer duas coisas do poder: uma é exercê-lo e ocupar o poder, é o que geralmente se faz; a outra é isso com mais uma coisa: ter uma ideia e saber como concretizá-la.
E acha que ele não tem uma ideia?
Nenhum dos partidos políticos em Portugal tem ideias suficientes. Há pessoas que, individualmente, têm ideias. Mas não é só ter ideias, é saber como concretizá-las.
Rui Rio não é um indeciso crónico?
Não sei. Não o conheço o suficiente para dizer isso. Acho que ele devia ter-se retirado da candidatura presidencial mais cedo. Porque não dava azo a dúvidas. O importante para o PSD não é tanto uma mudança de pessoa, é uma mudança de perfil, de natureza do próprio partido. Isso é que está em causa. O que está em causa não é mudar a por b. O grande problema para o PSD, como para qualquer partido, não é apenas alguém candidatar-se para ocupar o lugar. É alguém ter uma ideia que se consiga consubstanciar e saber como o fazer. A questão fundamental que o PSD tem de definir ele próprio e debater é qual o grau de adesão – regressámos à pergunta inicial que me colocou – que tem ao programa da troika. É aquele o programa do PSD? Ou é outro? Foi imposto ou aquilo, de facto, é o que no seu íntimo os líderes do partido pensaram? Isso é uma questão nuclear.
E isso já no próximo congresso?
Quanto mais cedo, melhor. O PSD não pode passar o tempo fingindo que não se passou nada, quando provocou mudanças profundas na sociedade portuguesa. Evitou o colapso financeiro do país, com custos sociais enormes – custos sociais e emocionais. E, como tal, é preciso fazer uma reflexão sobre isso. O PSD não pode passar como se nada tivesse acontecido. É preciso saber qual o grau de adesão e a que programa. Ao seu? Ao da troika? Ou há um novo?
É possível repensar o PSD dos últimos quatro anos e meio com a mesma liderança, com o líder que, afinal, fez estas opções?
Só com grandes atos de humildade. Isso é o que vamos ver. Se não o fizerem, o PSD terá sempre um ónus, uma etiqueta na testa: partido da austeridade. E, portanto, se quer voltar a ser poder é obrigado a mudar de lideranças, ou a liderança de líder. A liderança de toda a máquina que esteve envolvida em tudo isto, que definiu isto, que apoiou isto, e que não fez sequer um juízo crítico para si próprio. Se isto era justificável e se era correto. Se não o fizer, o partido tem dificuldades em um dia voltar ao poder. Se o fizer, também não basta ter uma atitude de humildade e reconhecer: errámos aqui, enganámo-nos aqui. Precisa de mais alguma coisa. Atitudes de mera autodesculpa ou de reconhecimento do erro com humildade não chegam. É preciso dizer para onde vamos. O que queremos. O grande problema do país não é falar em mudança, é dizer qual é a mudança. O que é essencial ao PSD para os próximos anos, se quiser ser um partido moderno, é novamente saber o que deve fazer, neste contexto, mas depois precisa de se ancorar política, social e sociologicamente nos estratos mais modernizadores da sociedade portuguesa – os estratos que o PSD ignorou olimpicamente nos últimos quatro anos.
Mas isso só se faz com novos protagonistas.
A conclusão é sua. Eu só apresentei premissas. A sua conclusão é que é difícil a alguns protagonistas liderantes em determinadas circunstâncias serem lideranças totalmente diferentes. A área científica, a cultural e a empresarial são as três grande âncoras que o PSD tem de voltar a ouvir, voltar a beber, para perceber como pode voltar, em conjunto, a propor algo ao país que garanta sustentabilidade social ao sistema de pensões ou ao sistema de apoios sociais, mas que tenha uma economia forte, sem a qual se mata o Estado social. Para isso, o PSD tem de se recentrar sociopoliticamente, tem de voltar a ancorar-se nas classes sociais que foram suas. Qual era a força do PPD e do PSD inicial? Era esta. O PSD não se impôs por ser social-democrata, impôs-se por, sociologicamente, conduzir a modernização nacional. E o país percebeu. Hoje em dia somos salvadores, sem dúvida, mas se calhar mais sob o comando da burocracia europeia que dos setores modernizadores da sociedade.
Acha que o PSD se prepara para consagrar em abril um derrotado?
Acho que o PSD, em abril, vai reeleger Passos Coelho.
Capaz de renovar uma vitória nas urnas, se formos para eleições este ano ou até no próximo?
Não temos eleições durante este ano.
Rui Rio pode dar-se ao luxo de falhar esse momento?
Se ele tem ambições políticas e vontade de fazer política, devia apresentar-se às próximas eleições para o congresso. Ele tem de dizer “estou aqui”. A maior parte dos líderes partidários, nos últimos anos, apareceram no dia a seguir à queda do líder anterior. Nunca prepararam o futuro. Estiveram sempre à espera da queda do líder. Acho que o estilo de que o PSD precisa é outro. Não precisa de alguém que ocupa o poder apenas pelo vazio deixado pelo anterior, mas de alguém que tem uma consistência perante o país e o eleitorado, com um símbolo de representação nacional forte. Para que os portugueses e o eleitorado do PSD digam: estes tipos estão a preparar-se a sério. Estes tipos têm alguma coisa para dizer a Portugal. Não são iguais aos outros, que apenas lá querem estar, mas querem entrar para fazer alguma coisa nova e diferente. Quem for assim, ganha a longo prazo. Quem não for assim, entra e sai.
O que fica do passismo no PSD?
Não vejo ninguém em Portugal, um líder, que pudesse corporizar e protagonizar sozinho a grande ideia de excelência da salvação da pátria. Se quiser, o líder do partido é um animador, o animador de alguma coisa mais forte do que ele próprio, que chega ao coração das pessoas, que toca as pessoas, as instituições, o futuro do país. Passismo, cavaquismo… são figuras de retórica que, para mim, não têm utilidade analítica. Porque isso era se cada um deles pudesse protagonizar tudo, e nunca é. Temos de perceber o que cada um deles quer protagonizar e se protagoniza. Mesmo quando o “protagoniza” é feito em conjunto. A fulanização é um fait divers, é uma situação de menorização da política portuguesa.