Ângelo Correia. “Cavaco pode ir a seguir para um convento onde se fazem atos de arrependimento, oração e penitência”

Ângelo Correia. “Cavaco pode ir a seguir para um convento onde se fazem atos de arrependimento, oração e penitência”


Daqui a dez anos Portas será candidato presidencial, prevê. Cavaco poderia ir para “um convento” depois de o mandato findar.


Apoia Marcelo Rebelo de Sousa. Como está a ver a campanha dele?
Sempre apoiei. Sempre o disse. Está a ser interessantíssima. Não se vê ao lado de nenhum político. Nunca se veem grandes massas humanas. Vê-se ele a pintar com as criancinhas, a pegar ao colo em meninos e meninas, a falar com velhinhos, com pessoas desconhecidas, a ser acompanhado por um Portugal plural, desconhecido, que nós não conhecemos mas que está com ele. Marcelo baseou–se numa campanha notável que é isentar da sua campanha a classe política. No fundo, o que Marcelo está a dizer é que a classe política não é boa companhia para ele.

E isso vai resultar?
Tem algum sucesso. Mas sobretudo não acelera os mecanismos de adesão da imagem de Marcelo à classe política portuguesa. Separa-os. E nisso ele foi hábil e inteligente.

Separa-o da classe política ou do PSD?
Separa-o da classe política em geral. Toda. Porque se assim não fosse podia rodear–se de pessoas do PS – que o vão apoiar, não tenho dúvidas. Conheço muitos. Marcelo só faria isso na última volta, se tivesse necessidade. E como na segunda volta, se existir, ainda terá mais votos do que na primeira…

Acha que na segunda volta, a existir, haveria mais pessoas a apoiar Marcelo em vez de Maria de Belém ou Sampaio da Nóvoa?
Muitas. Acho sinceramente que Marcelo pode ser eleito à primeira volta. Acho que vai ser. Basta os outros nove candidatos se unirem contra ele para se perceber que ele é muito importante. Quem está a dar força a Marcelo, além da força natural que ele tem, são os nove adversários, que estão todos contra ele. Quando toda a gente se junta contra alguém, esse alguém é muito importante. Quem está a fazer a campanha de Marcelo são também os nove candidatos que concorrem contra ele. 

E a colagem a António Costa: favorece ou prejudica?
Acho que já chega. Marcelo Rebelo de Sousa tem valores, princípios, e sempre os expressou. São uma constância ou invariância da atividade humana e comunicacional dele. Sempre o disse e sempre o afirmou. Contra ventos e marés. Mas tem também elementos de circunstância. Agora, o que ele vai ser depois é diferente. 

E o que vai ele ser como Presidente da República, se for eleito?
Acho que o prof. Marcelo vai tentar criar condições para haver maior harmonia em Portugal. Não é que a desarmonia e a desunião sejam excessivas. Porque, para além do lado emocional das coisas, as clivagens ideológicas que separam a direita da esquerda não são tantas quanto isso e justifiquem esses temores da bipolarização. Portanto, se existe é mais nas cúpulas e não tanto nas bases dos partidos que compõem o espetro político português. Há uma coisa que magoa os portugueses, que eles não esquecem: os cortes no seu nível de vida. Nos salários, pensões. Os portugueses não esquecem isso e vai demorar muitos anos a passar. Mas é politicamente transversal. Tanto existe no PSD como no CDS, como no PS, como no PCP. Existe ainda mais no PSD e no PS. Porque são os dois grandes partidos da classe média. Quem sofreu mais e vai sofrer no futuro é a classe média, que cada vez mais está a extinguir-se ou a ser reduzida a um papel subalterno, em vez de ter um papel central na sociedade portuguesa. E isso levaria a hostilidades até dentro do próprio PSD, que é o partido de Marcelo. Mas as pessoas não vão interpretar Marcelo como o fautor número um, nem essencial nem determinante dos males que sofreram. Marcelo está imune a isso. Mas eu desejaria que ele fizesse outra coisa. 
 

O quê?
Há muitos anos que Portugal deixou de pensar e de agir em nome dos seus interesses. Não os define, não pratica objetivos de acordo com os seus interesses. 

Estamos a falar da Europa?
Não só a Europa. Em relação à CPLP, o que verificamos nos últimos anos é um esvaziamento, o esbatimento das relações dentro da CPLP, particularmente de Portugal em relação a outros países, nomeadamente ao Brasil, Angola, Timor. São realidades que são construídas em todo o instante, são operáveis. É preciso toda a atenção para que elas continuem a funcionar e a melhorar. Nós não fizemos o suficiente nos últimos anos no sentido de contribuir para algo que unisse pelo menos a comunidade de afetos, quanto mais outro tipo de comunidades que podiam ter existido! Nós obliterámos o nosso papel no mundo. Há muito tempo que não temos política externa. Por isso, estou convencido que é essencial que Portugal tenha um caminho. É essencial pensarmos nisso. Porque na história portuguesa, os grandes momentos foram aqueles em que a liderança nacional pensou alguma coisa para o país. D. Afonso iii e depois D. Dinis pensaram o futuro de Portugal. Demoraram anos a pôr em prática, mas os seus sucessores fizeram. O Marquês de Pombal tinham um desígnio para Portugal. A “ínclita geração”.
 

Qual foi o último político a ter um desígnio para Portugal? 
Mário Soares, Sá Carneiro, Freitas do Amaral. Estamos a falar da Europa. Todos os três grandes líderes dos três grandes partidos democráticos, depois do 25 de Abril, perceberam isso. Só que, mais uma vez, a ideia estava correta, o princípio estava correto, o desígnio podia afirmar-se, mas era preciso construí-lo. E nós não o construímos. Ou seja, falhamos sempre no processo. Não somos maus a ter ideias, mas somos péssimos a executá-las. 
 

A adesão ao euro foi um disparate, na sua opinião?
Completo. Disse-o. Aliás, não votei Maastricht na Assembleia da República. Fui o único deputado do PSD que o fez. Disse há 24 anos que Maastricht era o caminho para a Alemanha mandar na Europa toda pela força do marco, que se chamaria euro. Nós participámos em algo por arrastamento, mas sem convicção. E sem estudarmos qual o nosso papel lá. Hoje em dia, o que acontece é que somos comandados do exterior. O nosso destino é irmos com os outros, não temos afirmação própria suficiente. 
 

Perdemos total soberania, no fundo?
A soberania, hoje em dia, é um bem cada vez mais escasso. E é um bem cada vez mais partilhado. Mas nós perdemos excessivamente, até nas privatizações. Um dos grandes problemas que se estabelece para o nosso país é perceber quais os instrumentos de Portugal para construirmos um conceito nacional de estratégia. Quais são os instrumentos? O Estado é débil. Mesmo a economia tem de ter operadores e eles não são comandados pelos interesses nacionais. E mais: são comandados por alguns interesses que, em alguns momentos, podem jogar contra os interesses nacionais. Não podíamos nunca ter critérios de privatizações meramente financeiros, quem dá mais. Mas quem hoje dá mais em termos de valores para além de dinheiro? Por isso, sempre fui contra o cancelamento das golden share, não por significarem um instrumento para o Estado nas empresas, mas temos de ter um ponto de legalidade instituída para que os titulares do poder das empresas sejam obrigados a discutir com o Estado, ou o Estado a discutir com eles, os aspetos essenciais destas empresas que se articulem profundamente com os interesses nacionais.
 

Justificar-se-iam algumas reversões de privatizações?
Acho que é pior a emenda que o soneto. O preço que pagaríamos agora, quer financeiro, quer político, seria elevado. Há aspetos da vida nacional que têm de ser ponderados e com tantos fatores que não podemos dar-nos ao luxo de apenas planearmos unilateralmente sem perceber as outras componentes, além das financeiras. Portugal desvaloriza a política e a nossa posição no mundo. Isso é uma razão da minha angústia permanente. Não tratamos de nós.
 

António Costa pode mudar a relação com a Europa?
Não. Não é que ele não tenha vontade de o fazer. Mas sucedem dois movimentos antagónicos na Europa. O norte e o centro caminham claramente para nacionalismos, de exclusão em relação à União Europeia. Tudo isso coloca estes países cada vez mais numa órbita de centrifugação em relação ao centro da Europa. Por outro lado, os países do sul são afetados por outros problemas: o problema do excesso de dívida, o excesso de não integração nas redes de modernidade da produção. E, como tal, acontece que temos uma Europa em que o norte não entende o sul e o sul não entende o norte. E aqui o único polo consistente é o poder alemão. Vamos ser obrigados a aceitar a Alemanha como potência diretora. Em vez de dizermos que a Europa é constituída por x países, vamos ser obrigados a dizer que não há diretório mas que há uma potência diretora.
 

E aguentamos isso?
Não sei se aguentamos. Mas é inevitável. Se percebermos que os elementos de coesão na Europa estão a dissolver-se, que se esbatem cada vez mais as fronteiras da solidariedade e interligação entre os Estados, em que as polarizações se fazem em lógicas distintas, em alguns casos opostas, há que ter alguém que crie uma ordem suficientemente sólida na Europa para ela resistir. A única potência que pode introduzir ordem na Europa é a Alemanha. Só que isso é reconhecer a Alemanha como potência diretora. Não gostaria nem aceitaria que um tratado colocasse a Alemanha nessa posição. Assim como a NATO. Somos todos iguais mas, na prática, os EUA é que mandam quando é necessário. Nós dependemos na Europa de um modelo em que somos todos iguais mas, na prática, não é assim e estamos próximos de o reconhecer. Quando isso acontecer, acabou o sonho europeu. Estamos num novo império.
 

No fundo há a necessidade desse abraço da Alemanha?
O abraço alemão pode revelar-se fundamental face à desunião da Europa, face às polarizações centrifugantes que existem e à falta de sentido de unidade. Eu não diria império, porque a palavra império tem várias conotações. Mas há impérios benignos que foram espantosos para o tempo em que se passaram: o império chinês, o império romano, que foi um império notável, garantiu a concessão de cidadania em todas as áreas que ocupava… É um aspeto espantoso da cultura europeia. O império americano, se é que assim lhe podemos chamar, é um império benevolente. É um império que não ocupa territorialmente… 
 

Mas não foi nada benevolente na maneira como tratou a América Latina nos anos 70.
É verdade. Mas estou a falar de hoje em dia. É um império que existe pela necessidade internacional, dada a fraqueza da ONU. Ou seja, se a ONU fosse um centro de debate das questões, de resolução dos problemas e de imposição da ordem e da lei internacional, estaríamos salvaguardados e não precisaríamos de outros impérios. Não precisamos de outros impérios da lei.