Ressurreição migrante


Mas que garantias tens se voltares a Lisboa? E que garantias tinha quando cheguei a Londres? 


Estou de volta. Tenho de o dizer em voz alta. Tenho de o repetir. Olhar em redor para o confirmar. Abrir a janela e sentir a brisa quente de verão. Parece mais uma vinda de férias. Mas não é. Tenho que tomar consciência que deixei Londres e que passados 8 anos estou de volta a Lisboa. 

Deve ser isto que as pessoas confiantes sentem. Sinto-me cheio de energia, sinto-me leve. 150 quilos mais leve, divididos por 8 caixas que ainda não chegaram. Sobretudo livros e alguma roupa demasiado quente para o clima português. 

Foi tudo muito rápido. Um dia em Londres estou a olhar para as células de um documento excel a tentar resolver os vermelhos, a procrastinar os amarelos e ansiando os verdes como quem espera um gosto no Facebook, feito ratinho de laboratório que carrega incessante num botão que lhe dê a sua mini dose de dopamina, sonhando com um mundo de vales, montanhas, colunas e quadradinhos verdejantes, quando outro ratinho se apoia na minha secretária e diz, reunião com toda a gente daqui a 10 minutos na cantina.

Folks. Estamos em Londres mas a empresa é americana. Estimados colegas, de certo têm estado ao corrente do que se passa através das notícias, os rumores acerca da situação da empresa na Europa têm razão de ser, we are very sorry to announce…* 

À minha volta inicia-se um concurso de choro e rostos boquiabertos. Tento sair daquela sala o mais depressa possível sem fazer denotar a tristeza que não sinto. Mais um minuto ali e os mortos-vivos corporativos ainda cheiram o meu sangue feliz. Quantas vezes olhei para o escritório do meu chefe e me vi a entregar a carta de demissão. E ao porquê André. Responder, porque quero ir para casa. Porque os anos passam e não me sinto mais realizado aqui, aceitei uma promoção que não queria que me colocou a mandar muito e a fazer pouco. E eu quero trabalhar, quero testar-me, correr riscos, quero fazer cinema. Mas que garantias tens se voltares a Lisboa? E que garantias tinha quando cheguei a Londres? Quero tentar fazer algo com aqueles que se importam com as mesmas coisas que eu. No meu país, o ano passado ficou conhecido como ano zero, o governo português cortou todos os fundos para o cinema. Pois este também será o ano zero para mim, mas significará um novo começo. desde os 19 anos que trabalho para os outros e para ideias que não são minhas e muito aprendi, mas agora chegou a vez de usar a experiência que adquiri em algo que vem da minha cabeça. Agora é a altura certa, agora é sempre a altura certa. Depois, é sempre uma oportunidade perdida. 

Quantas vezes engoli em seco este discurso. Mas agora não tenho mais explicações a dar. Supressão de posto de trabalho dizem. Assina aqui. Apanha o teu cheque ali. Bye. Despeço-me dos meus colegas. Dos meus amigos. De Londres. Seguem-se dias de uma paz interior imensa. Não tenho trabalho, não tenho casa.  

Tenho um novo número de telemóvel. Um número português. Estou. Lázaro? Não, não sou o Lázaro, é engano. Não é o Lázaro? É como lhe digo. Será piada teológica? Serei notícia nos jornais de amanhã? "A Ressurreição de André", "André renasce para uma nova vida em Lisboa." Serei um caso de ressurreição migrante?

Voltei ou não voltei? Começam os clichés. Está tudo igual, mas diferente. São as mesmas pessoas, mas não são as mesmas pessoas. As tabernas foram substituidas por novos bares decorados profissionalmente para parecer. Tabernas. Estarei a viver noutra dimensão? Assim como até há pouco tempo atrás apanhava um avião para vir fazer férias em casa, e não entendia que isso era afinal uma impossibilidade, uma falha tectónica no mapa mental. Uma versão ao lado da realidade. Acontecia, mas era um mundo de fantasia. Jamais tendo a honestidade de admitir que nem me sentia em casa, nem me sentia de férias. Era uma história que acreditava estar a viver e ninguém tinha a crueldade de me corrigir, como quando ouvimos alguém dizer que vai subir para cima ou que não vota para eles aprenderem. 

Também no voltar de vez para casa existe uma falácia construída, camada calcada após camada nos dias mais difíceis da saudade emigrante. Quando lá longe no sítio que escolhi para emigrar, no conforto do aquecimento central da minha classe média conquistada além mar, digo em tom apaziguador ao Dom Quixote que se agita no reflexo da janela, um dia vingar-me-ei do tempo e tornarei a casa. Tudo estará igual. Igual e melhor. Mas a verdade é que jamais voltei a casa. Voltei ao meu país e à minha cidade, é certo. Mas tal como eu, tudo mudou. Desenvolveu-se, nem sempre como esperava mas a vida continuou, o óbvio aconteceu tal como Auden avisou, 'O let not time deceive you, You cannot conquer time.**

Portugal é um país novo, um mundo novo aos meus olhos. E eu afinal mantenho-me emigrante. Agora no meu próprio país. Já não me lembro como se trabalha aqui. Como se interage com as pessoas. Estender a mão a uma senhora que conheço pela primeira vez é inusitado? Devia dar dois beijinhos? A sério? Sempre foi assim? Tenho de aprender as coisas básicas, de novo. Algumas já aprendi. A menos que seja a um cliente quase ninguém responde a emails. Se quero respostas, tenho de telefonar fora da hora de almoço que dura das 12h30 às 14h30. Um sim, às vezes quer dizer não. E um não pode significar não sei. Tenho de aprender a conjugar este presente futuro. Para deixar de ouvir, falas tão bem português. És de onde? Há quanto tempo estás em Portugal?

Sim André, isso é tudo muito bonito. E arranjar um trabalho mesmo, daqueles que pagam? Não te preocupes. Nada nem ninguém me parará, para mim só existe um caminho, o do sucesso absoluto. Ai sim? Julgava que era o caminho do IEFP e da Segurança Social diz a minha namorada.

*Lamentavelmente temos de anunciar que…

**não confies no tempo, não o podes conquistar. (tradução livre do original AUDEN, W.H. Selected poems. London: Faber & Faber, 1979)


Ressurreição migrante


Mas que garantias tens se voltares a Lisboa? E que garantias tinha quando cheguei a Londres? 


Estou de volta. Tenho de o dizer em voz alta. Tenho de o repetir. Olhar em redor para o confirmar. Abrir a janela e sentir a brisa quente de verão. Parece mais uma vinda de férias. Mas não é. Tenho que tomar consciência que deixei Londres e que passados 8 anos estou de volta a Lisboa. 

Deve ser isto que as pessoas confiantes sentem. Sinto-me cheio de energia, sinto-me leve. 150 quilos mais leve, divididos por 8 caixas que ainda não chegaram. Sobretudo livros e alguma roupa demasiado quente para o clima português. 

Foi tudo muito rápido. Um dia em Londres estou a olhar para as células de um documento excel a tentar resolver os vermelhos, a procrastinar os amarelos e ansiando os verdes como quem espera um gosto no Facebook, feito ratinho de laboratório que carrega incessante num botão que lhe dê a sua mini dose de dopamina, sonhando com um mundo de vales, montanhas, colunas e quadradinhos verdejantes, quando outro ratinho se apoia na minha secretária e diz, reunião com toda a gente daqui a 10 minutos na cantina.

Folks. Estamos em Londres mas a empresa é americana. Estimados colegas, de certo têm estado ao corrente do que se passa através das notícias, os rumores acerca da situação da empresa na Europa têm razão de ser, we are very sorry to announce…* 

À minha volta inicia-se um concurso de choro e rostos boquiabertos. Tento sair daquela sala o mais depressa possível sem fazer denotar a tristeza que não sinto. Mais um minuto ali e os mortos-vivos corporativos ainda cheiram o meu sangue feliz. Quantas vezes olhei para o escritório do meu chefe e me vi a entregar a carta de demissão. E ao porquê André. Responder, porque quero ir para casa. Porque os anos passam e não me sinto mais realizado aqui, aceitei uma promoção que não queria que me colocou a mandar muito e a fazer pouco. E eu quero trabalhar, quero testar-me, correr riscos, quero fazer cinema. Mas que garantias tens se voltares a Lisboa? E que garantias tinha quando cheguei a Londres? Quero tentar fazer algo com aqueles que se importam com as mesmas coisas que eu. No meu país, o ano passado ficou conhecido como ano zero, o governo português cortou todos os fundos para o cinema. Pois este também será o ano zero para mim, mas significará um novo começo. desde os 19 anos que trabalho para os outros e para ideias que não são minhas e muito aprendi, mas agora chegou a vez de usar a experiência que adquiri em algo que vem da minha cabeça. Agora é a altura certa, agora é sempre a altura certa. Depois, é sempre uma oportunidade perdida. 

Quantas vezes engoli em seco este discurso. Mas agora não tenho mais explicações a dar. Supressão de posto de trabalho dizem. Assina aqui. Apanha o teu cheque ali. Bye. Despeço-me dos meus colegas. Dos meus amigos. De Londres. Seguem-se dias de uma paz interior imensa. Não tenho trabalho, não tenho casa.  

Tenho um novo número de telemóvel. Um número português. Estou. Lázaro? Não, não sou o Lázaro, é engano. Não é o Lázaro? É como lhe digo. Será piada teológica? Serei notícia nos jornais de amanhã? "A Ressurreição de André", "André renasce para uma nova vida em Lisboa." Serei um caso de ressurreição migrante?

Voltei ou não voltei? Começam os clichés. Está tudo igual, mas diferente. São as mesmas pessoas, mas não são as mesmas pessoas. As tabernas foram substituidas por novos bares decorados profissionalmente para parecer. Tabernas. Estarei a viver noutra dimensão? Assim como até há pouco tempo atrás apanhava um avião para vir fazer férias em casa, e não entendia que isso era afinal uma impossibilidade, uma falha tectónica no mapa mental. Uma versão ao lado da realidade. Acontecia, mas era um mundo de fantasia. Jamais tendo a honestidade de admitir que nem me sentia em casa, nem me sentia de férias. Era uma história que acreditava estar a viver e ninguém tinha a crueldade de me corrigir, como quando ouvimos alguém dizer que vai subir para cima ou que não vota para eles aprenderem. 

Também no voltar de vez para casa existe uma falácia construída, camada calcada após camada nos dias mais difíceis da saudade emigrante. Quando lá longe no sítio que escolhi para emigrar, no conforto do aquecimento central da minha classe média conquistada além mar, digo em tom apaziguador ao Dom Quixote que se agita no reflexo da janela, um dia vingar-me-ei do tempo e tornarei a casa. Tudo estará igual. Igual e melhor. Mas a verdade é que jamais voltei a casa. Voltei ao meu país e à minha cidade, é certo. Mas tal como eu, tudo mudou. Desenvolveu-se, nem sempre como esperava mas a vida continuou, o óbvio aconteceu tal como Auden avisou, 'O let not time deceive you, You cannot conquer time.**

Portugal é um país novo, um mundo novo aos meus olhos. E eu afinal mantenho-me emigrante. Agora no meu próprio país. Já não me lembro como se trabalha aqui. Como se interage com as pessoas. Estender a mão a uma senhora que conheço pela primeira vez é inusitado? Devia dar dois beijinhos? A sério? Sempre foi assim? Tenho de aprender as coisas básicas, de novo. Algumas já aprendi. A menos que seja a um cliente quase ninguém responde a emails. Se quero respostas, tenho de telefonar fora da hora de almoço que dura das 12h30 às 14h30. Um sim, às vezes quer dizer não. E um não pode significar não sei. Tenho de aprender a conjugar este presente futuro. Para deixar de ouvir, falas tão bem português. És de onde? Há quanto tempo estás em Portugal?

Sim André, isso é tudo muito bonito. E arranjar um trabalho mesmo, daqueles que pagam? Não te preocupes. Nada nem ninguém me parará, para mim só existe um caminho, o do sucesso absoluto. Ai sim? Julgava que era o caminho do IEFP e da Segurança Social diz a minha namorada.

*Lamentavelmente temos de anunciar que…

**não confies no tempo, não o podes conquistar. (tradução livre do original AUDEN, W.H. Selected poems. London: Faber & Faber, 1979)