De um só passo, ao levar a cabo uma matança absurda, a Arábia Saudita pôs meio mundo contra si e provocou a instabilidade regional, depois de no dia 2 de janeiro ter concretizado a há muito anunciada – mas sem data marcada – execução de 47 homens acusados de terrorismo. Entre eles o popular sheik xiita Nimr al-Nimr, de 56 anos.
A reação mais forte veio dos também xiitas vizinhos e rivais iranianos. A embaixada saudita em Teerão foi incendiada, os diplomatas sauditas abandonaram o Irão e 40 pessoas foram detidas por suspeita de participação no ataque, considerado “injustificado” pelo Presidente Hassan Rouhani.
Rouhani foi diplomático na gestão da morte de al-Nimr – uma violação dos direitos humanos e dos valores do Islão, considerou –, mas outros líderes do país não tiveram papas na língua. O aiatola Khamenei, Líder Supremo iraniano, escreveu no Twitter que Riade enfrentará uma “vingança divina” por ter morto o sheik. “O sangue injustamente derramando do mártir #SheikhNimr” irá desencadear a “a ira divina sobre os políticos sauditas” ameaçou. Não foi o único a prever que o caso irá ter consequências políticas. Ainda no Irão, a poderosa Guarda Revolucionária comparou a execução às ofensivas do Estado Islâmico. Um “ato de selvajaria medieval” que levará ao “derrube” da monarquia saudita.
Quem manda? Riade respondeu com um sério ataque. O ministro dos Negócios Estrangeiros deu 48 horas ao embaixador iraniano para abandonar o país, defendendo que a conduta de Teerão está ameaçar a segurança saudita. Antes desta decisão drástica, Adel al-Jubair já tinha acusado o Irão de mostrar “a sua verdadeira face de apoio ao terrorismo”. Um “sectarismo cego” que transforma o país em “coautor dos crimes [dos terroristas] em toda a região” onde as duas potências lutam pelo poder. Ainda antes do corte de relações, Hassan Hassan, especialista em assuntos do Médio Oriente ouvido pelo Guardian, dava nota de que a altura escolhida pelos sauditas para matar al-Nimr é “particularmente relevante”, porque surge “no contexto de uma série de movimentações políticas de Riade para consolidar as suas alianças regionais, como o eixo Ancara-Doha-Riade, bem como o bloco mais amplo de vários países muçulmanos” – a Coligação contra o Estado Islâmico. Isto é: para Riade mostrar que é que manda.
Os aliados sauditas na região calaram ou aplaudiram as execuções. Mas os protestos não faltaram. Mais tímidos na Arábia Saudita, violentos no Barém, onde foram dispersados com gás lacrimogéneo. E ainda no Líbano, no Paquistão ou na índia. Noutro dos grandes regionais, o Iraque – que recentemente tem somado vitórias contra o EI –, o líder religioso xiita Moqtada al-Sadr pediu protestos musculados junto dos interesses do Reino. E ao seu governo exigiu o encerramento da embaixada saudita, aberta há apenas uma semana depois de mais de vinte anos encerrada.
Também a ONU, os Estados Unidos e a União Europeia criticaram a decisão saudita. Ban Ki-moon disse-se “profundamente consternado” e apelou à calma na região. O responsável pelos Direitos Humanos da organização, o príncipe jordano Zeid Raad al-Hussein, considerou as execuções “muito perturbadoras, nomeadamente porque algumas das pessoas condenadas à morte estavam acusadas de crimes não violentos”. Levantou dúvidas sobre a condução dos processos judiciais e lamentou o número de executados, recordando que a lei internacional só admite a pena capital nos “crimes mais graves”.
Os EUA, aliados da Arábia Saudita, pediram a Riad a garantia de processos judiciais justos e a aceitação da expressão pacífica de discordâncias. Federica Mogherini, a chefe da diplomacia da União Europeia, falou com o MNE iraniano pedindo calma, receando que a execução “inflame as tensões sectárias que já causam sérios danos na região”.
A maioria dos 47 executados são terroristas da Al Qaeda, condenados por ataques entre 2003 e 2006. Entre os quais o assassino de um câmara da BBC que deixou ainda paraplégico outro jornalista da estação. Mas não só. No grupo que morreu às mãos dos carrascos sauditas – por fuzilamento ou por decapitação – estão quatro xiitas detidos durante protestos entre 2011 e 2013.
Dois deles tinham 18 e 19 anos quando foram levados pela polícia, acusaram organizações de defesa dos direitos humanos. Neste grupo está o homem cuja morte provocou a ira dos muçulmanos xiitas e a condenação do mundo ocidental.
O sheik mártir O sheik Nimr al-Nimr nasceu na Arábia Saudita em al-Qatif, perto do Barém, e fez a maior parte dos seus estudos no Irão e na Síria. Regressou em 1994, tendo-se tornado um proeminente líder religioso xiita, um aiatola. Os seus sermões tornaram-se famosos: criticava abertamente o regime e a monarquia sauditas e exigia direitos para a minoria xiita, alvo de discriminação no Reino.
Em 2011, na sequência da Primavera Árabe, Nimr al-Nimr foi um dos principais impulsionadores dos protestos na Província Oriental – a maior do país, rica em petróleo e onde os xiitas são maioria –, tornando-se uma referência para os milhares de jovens seguidores do xiismo que saíram para as ruas do país e também no arquipélago do Barém.
O sheik advogou sempre manifestações pacíficas. Numa entrevista à BBC, em 2011, dizia preferir “o rugido da palavra contra as autoridades, em vez de armas (…) a arma da palavra é mais forte que as balas, porque as autoridades lucrariam com uma insurreição armada”. O pacifismo não o salvou. Foi várias vezes detido, até ser preso em 2012.
Em Outubro de 2014 foi condenado à pena capital, depois de ter sido considerado culpado de tentar a “intromissão estrangeira” no país, de “desobedecer” aos governantes e de usar armas contra as forças de segurança. Foi o seu irmão Mohammed que deu noticiou a sua sentença, no Twitter. O regime prendeu-o. E, mais tarde, condenou o seu sobrinho – filho de Mohammad e preso com 15 anos – à morte por crucificação, também por participação nos protestos.
A sua condenação levou a novos protestos. AAmnistia Internacional considerou-a “parte de uma campanha das autoridades da Arábia Saudita para esmagar toda a dissidência, incluindo os defensores dos direitos das comunidades xiitas do reino”.
O chefe das Forças Armadas iranianas advertiu os seus vizinhos e rivais de que iriam “pagar caro” se al-Nimr chegasse ao cadafalso.
Ao longo destes dois anos muitas petições e recursos tentaram travar a execução: na Arábia Saudita, mas também para a ONU e para o governo norte-americano.
Em vão: Nimr al-Nimr, como escreveu o “Guardian”, era um espinho encravado na carne do regime saudita. Demasiado encravado e demasiado afiado.