Não me lembro do nome dela, nem do rosto. Foi há mais de dez anos, mas não sei bem quando. Foi na Faculdade onde, então, eu era docente, num exame oral de processo penal. Nesse tempo, era frequente um professor pôr fim ao exame antes de cumprido um número usualmente mínimo de questões, quando o aluno dava três ou quatro respostas erradas sucessivas ou mesmo após uma resposta cujo erro fosse especialmente grave. O examinado via o rosto do professor fechar-se e ouvia um “fez o seu exame”. Nunca apreciei o procedimento, e vinculei-me à regra de haver sempre um número mínimo de questões. Que me recorde, só quebrei a regra uma vez, precisamente com essa aluna de cujos nome e rosto não me lembro.
Mas do exame lembro-me. Creio que antes da questão fatal lhe fiz uma pergunta, a que não respondeu bem. Depois, eu disse-lhe mais ou menos isto: Imagine que o senhor A é notificado de uma acusação na qual lhe é imputado o crime de homicídio, porque matou o senhor B; e a acusação diz apenas isso. A senhora vê nisto algum problema, considerando as regras do processo penal? – perguntei. Ela olhou para mim, serena, e disse-me com aquele ar de alívio com que se responde a uma pergunta fácil: Não vejo problema nenhum. As minhas entranhas deram uma voltinha, quase lhe atirei um “fez o seu exame”, mas agarrei-me à minha regra e disse-lhe: Pense bem, repare que a acusação não diz quando matou, onde matou, nem como matou. Ela continuou a olhar-me serena, esboçou um meio sorriso, como quem diz “este ou é parvo ou é mesmo bonzinho”, e repetiu a resposta que já dera. Fiz um último esforço e disse-lhe: Mas, repare, o acusado tem o direito de se defender, não acha que para isso ele precisa que a acusação diga mais coisas, nomeadamente onde matou, quando matou, como matou? Ela, então, perdeu a serenidade e – já não com olhar de cordeiro pascal e meio sorriso condescendente, mas com a chama dos convictos – respondeu-me: Oh doutor, não é preciso que a acusação diga nada disso, o acusado sabe muito bem o que fez!
E foi aí que eu fechei o rosto e lhe disse “fez o seu exame”. Hoje, penso às vezes nesse exame e interrogo-me se essa aluna não fará parte do coro – que ganha novos membros a cada dia – que, para certo tipo de casos (onde se aponta o dedo a colarinhos clarinhos), meteu na gaveta o núcleo das garantias, a presunção de inocência e até alguma decência processual. O coro dos que dividem o mundo em bons e maus, que confundem virtude com ignorância, que falam e falam – a fim de não serem forçados a ouvir os outros – e que chamam aos que deles discordam matilha de serventuários de certos interesses. Que bem ficava a aluna nesse coro, vendo filmes de polícias e ladrões, estudando em Savile Row as cores e as formas dos colarinhos e cantando o estribilho gingão “eles sabem bem o que fizeram”. E ainda bem que não lhe perguntei nada sobre formas de obter a colaboração ou a confissão dos acusados. Imagine-se as respostas possíveis.
Advogado