Por que não devemos andar contentinhos


As palmadas nas costas são reconfortantes, mas, por vezes, podem ser traiçoeiras.


Comprei, recentemente, um livro de um juiz italiano que, muito criticamente, aborda um assunto momentoso: o abusivo uso do direito e do processo penal.

Durante muitas páginas o fui lendo; empolgado primeiro, depois mais céptico.

Estimulado na parte em que questionava uma certa maneira de conduzir investigações; céptico quando, também ele, projectava juízos não sustentados sobre as intenções escondidas da maioria dos investigadores.

De qualquer forma, o livro aborda questões sensíveis.

Houve, porém, um momento em que o nível da crítica, ou melhor, a ligeireza com que o autor – um magistrado que chegou a desempenhar funções de destaque – acusa o comportamento, segundo ele desviante, da generalidade dos seus colegas, começou a perturbar-me.

O autor – refira-se – terá, de acordo com a sua biografia, participado em associações democráticas e progressistas de magistrados e afirma continuar a sustentar essas mesmas opções.

Perturbado com o que li, procurei informar-me mais detalhadamente sobre a sua pessoa junto de colegas que conheço há muito e em quem deposito sólida confiança; até porque, também eles, críticos públicos de exageros que ocorreram em Itália.

A informação que me deram foi frustrante.

O autor do livro reformara-se, voluntária e precipitadamente, porque, contra ele, corriam inquéritos por práticas pouco sérias no relacionamento com instituições e pessoas cuja salvaguarda estava a seu cargo. Só depois disso se sentira, aliás, inclinado a censurar o sistema penal e judicial, não lhe sendo conhecida antes alguma intervenção crítica pública nos fóruns ou congressos da associação de que dizia fazer parte.

Devido, precisamente, à existência desses processos, não revelo aqui o nome da obra e do autor.

2. Desvendada a sua motivação, pareceu-me, de imediato, que toda a argumentação se desfazia por si.

De repente, tudo o que li parecia ter deixado de fazer sentido.

O que o autor escrevera não passava, afinal, de uma peça de defesa enviesada numa já velha estratégia: a melhor defesa é o ataque.

E, no entanto, mesmo a contragosto, não pude deixar de reconhecer que algumas das coisas que ele escrevera deveriam merecer a atenção de todos os que, em Itália, lidam com o sistema penal e judicial.

No fundo, quando participamos numa discussão pública sobre as leis que usamos e as práticas que desenvolvemos, somos confrontados com um dilema semelhante ao dos processos.

Conseguir apreender o significado objectivo das coisas, independentemente da evidente leitura oportunista e interessada dos que no-las transmitem.

Não é fácil, tanto mais que os vícios – verdadeiros ou falsos – que são apontados não dependem, em regra, da vontade de quem actua em defesa da sociedade e, por conseguinte, quem age de boa-fé sente-se, naturalmente, chocado com as críticas que lhe são dirigidas, designadamente quando procedem de partes interessadas na deslegitimação da sua actividade.

Mas isso não evita que os vícios continuem a ser vícios.

Jurista. Escreve à terça-feira  


Por que não devemos andar contentinhos


As palmadas nas costas são reconfortantes, mas, por vezes, podem ser traiçoeiras.


Comprei, recentemente, um livro de um juiz italiano que, muito criticamente, aborda um assunto momentoso: o abusivo uso do direito e do processo penal.

Durante muitas páginas o fui lendo; empolgado primeiro, depois mais céptico.

Estimulado na parte em que questionava uma certa maneira de conduzir investigações; céptico quando, também ele, projectava juízos não sustentados sobre as intenções escondidas da maioria dos investigadores.

De qualquer forma, o livro aborda questões sensíveis.

Houve, porém, um momento em que o nível da crítica, ou melhor, a ligeireza com que o autor – um magistrado que chegou a desempenhar funções de destaque – acusa o comportamento, segundo ele desviante, da generalidade dos seus colegas, começou a perturbar-me.

O autor – refira-se – terá, de acordo com a sua biografia, participado em associações democráticas e progressistas de magistrados e afirma continuar a sustentar essas mesmas opções.

Perturbado com o que li, procurei informar-me mais detalhadamente sobre a sua pessoa junto de colegas que conheço há muito e em quem deposito sólida confiança; até porque, também eles, críticos públicos de exageros que ocorreram em Itália.

A informação que me deram foi frustrante.

O autor do livro reformara-se, voluntária e precipitadamente, porque, contra ele, corriam inquéritos por práticas pouco sérias no relacionamento com instituições e pessoas cuja salvaguarda estava a seu cargo. Só depois disso se sentira, aliás, inclinado a censurar o sistema penal e judicial, não lhe sendo conhecida antes alguma intervenção crítica pública nos fóruns ou congressos da associação de que dizia fazer parte.

Devido, precisamente, à existência desses processos, não revelo aqui o nome da obra e do autor.

2. Desvendada a sua motivação, pareceu-me, de imediato, que toda a argumentação se desfazia por si.

De repente, tudo o que li parecia ter deixado de fazer sentido.

O que o autor escrevera não passava, afinal, de uma peça de defesa enviesada numa já velha estratégia: a melhor defesa é o ataque.

E, no entanto, mesmo a contragosto, não pude deixar de reconhecer que algumas das coisas que ele escrevera deveriam merecer a atenção de todos os que, em Itália, lidam com o sistema penal e judicial.

No fundo, quando participamos numa discussão pública sobre as leis que usamos e as práticas que desenvolvemos, somos confrontados com um dilema semelhante ao dos processos.

Conseguir apreender o significado objectivo das coisas, independentemente da evidente leitura oportunista e interessada dos que no-las transmitem.

Não é fácil, tanto mais que os vícios – verdadeiros ou falsos – que são apontados não dependem, em regra, da vontade de quem actua em defesa da sociedade e, por conseguinte, quem age de boa-fé sente-se, naturalmente, chocado com as críticas que lhe são dirigidas, designadamente quando procedem de partes interessadas na deslegitimação da sua actividade.

Mas isso não evita que os vícios continuem a ser vícios.

Jurista. Escreve à terça-feira