Quando foi eleito presidente do PSD, Cavaco Silva declarou guerra às ideologias e exaltou o pragmatismo. Na sua opinião, os problemas do país derivavam em larga medida de discussões políticas que dificultavam a resolução dos problemas, pelo que a nova ordem que se propunha instituir, e que de facto instituiu, abandonaria as questões ideológicas e abraçaria a acção. Fazer e não debater transformou-se desse modo no grande cartaz do cavaquismo, um cartaz apostado na mensagem de que a Cidade não precisava de quem a pensasse mas de quem a construísse e na ideia de que o país deveria ter técnicos e não políticos. E essa mensagem, bem como a ideia que a suportava, vingou. Cansados da instabilidade governativa que se tinha apoderado de Portugal após a morte de Sá Carneiro e de Amaro da Costa, desiludidos com a fragilidade das soluções partidárias e com as constantes guerras e questiúnculas entre facções e grupos políticos, a esmagadora maioria dos portugueses apoiou Cavaco vendo nele o grande condutor de que o povo necessitava para que a sua vida pudesse progredir. E a sua vida efectivamente progrediu. Sem sustentabilidade duradoura, como anos mais tarde se viria a provar, mas com resultados imediatos indiscutíveis e bem visíveis apoiados essencialmente, ou até exclusivamente, na construção e no consumo. Neste cenário, qualquer tentativa de discussão ideológica estava, como esteve, condenada a fracassar, porque diante um presente radioso com inesgotáveis facilidades de crédito e com avultadas verbas comunitárias a fundo perdido, poucos eram os disponíveis para debater ideias e pensar o futuro. Os portugueses gostavam do que estavam a ter e de forma absoluta o agradeceram a Cavaco, por duas vezes consecutivas. Os ventos corriam de feição e o ambiente era de franca euforia. De pouco importava se os consumidores gastavam mais do que podiam, se os gestores, que exibiam com lauto vigor a sua capacidade na condução dos negócios, tinham real capacidade para enfrentar momentos difíceis ou se as empresas, apenas suportadas pelas ajudas bancárias e pelo facilitismo consumista, possuíam condições para se manter no mercado, quando as condições financeiras se alterassem. Nada disso era relevante e qualquer vontade em debater e reflectir sobre modelos de sociedade e de país esbarrava num imenso muro de betão. O pragmatismo do momento revelava-se bem mais importante que tudo o resto.
Sucede porém que esta ideia não desapareceu! Cavaco pode estar de saída, mas o seu legado deixou marca e uma marca profunda. Não é por acaso que hoje vemos os seus muitos herdeiros atacarem as opções ideológicas do governo PS, evocando em sua defesa já não o pragmatismo mas o realismo. A palavra pode ter mudado, mas a essência de quem a utiliza é a mesma que durante tanto tempo foi utilizada por Cavaco. Hoje como ontem, estes herdeiros do cavaquismo não perceberam que uma ideologia se combate com outra ideologia, que aos valores políticos da esquerda se responde com valores políticos da direita, que a um modelo de sociedade se responde com um modelo de comunidade. Não perceberam e não querem perceber, pela simples razão de que quem só tem interesses momentâneos não tem ideais e quem não tem ideais só tem presente.
Um Bom Natal
Prof. da Universidade Lusíada, Escreve quinzenalmenteà quarta-feira