Em Abril de 2015, Marine Le Pen entra em ruptura com o presidente de honra do seu partido, a quem sucedeu anos antes na liderança da Frente Nacional (FN) – Jean-Marie Le Pen, conhecido por o menir, presidente da FN desde a sua fundação, que, para além de tudo isso, é seu pai. A meio da discussão, por entrepostas páginas dos jornais, o chefe do clã Le Pen deixou escapar: “Ela deseja a minha morte, até é capaz de a ter, mas não me vai calar”. Quais eram as palavras que a herdeira não queria escutar? Desde a sua eleição, no XIV congresso da FN, em Janeiro de 2011, que Marine Le Pen traçou uma estratégia de levar o partido até ao poder. Passo a passo, a FN foi atingindo os seus melhores resultados eleitorais (17% nas presidenciais de 2011, o primeiro lugar nas Europeias de 2014 e a vitória nas eleições regionais de há poucos dias). Todo esse caminho se baseia num aggiornamento da extrema-direita francesa, uma espécie de “desdiabolização” que a deixasse radical qb, mas sem ser de “extrema” na cabeça das pessoas. Essa mudança não se faz sem “matar” o pai. O diabo é que o velho demónio percebe isso e não gosta.
“Decidi abrir um processo disciplinar”, declarou Marine Le Pen ao canal de televisão TF1, depois de vários dias de declarações polémicas do pai. “Ninguém compreenderia que exista no seio da FN personalidades que possam expressar posições contrárias aos estatutos do partido”, justificou. O velho patriarca da família resolveu fazer, aos 86 anos, um conjunto de declarações em que considerava as câmaras de gás dos campos de concentração nazi um pequeno “detalhe” na história, e defender o marechal Petain, que conduziu a França à colaboração com os nazis. Embalado na polémica com a filha, passou ao ataque: numa entrevista ao semanário de extrema-direita “Rivarol”, falou de um “lobby arco-íris” de homossexuais na FN, que acompanhariam a filha na nova direcção do partido, e apelidou de excessivas as tentativas de Marine de contrariar as acusações de anti-semitismo, xenofobia e homofobia na FN.
Ninguém faria prever tal desenlace entre pai e filha, entre o fundador e a sua herdeira, o criador e a criatura criada. No rescaldo de uma anterior crise familiar, a mãe de Marine, Pierrette Le Pen, depois de ter fugido de casa, queixava-se da filha: “Marine é o clone absoluto do seu pai”.
Na sua primeira aparição num programa de sucesso da TF2, “L’Heure de Verité”, a 13 de Fevereiro de 1984, Jean-Marie Le Pen apresentava a família em jeito de ideologia: “gosto mais das minhas filhas dos que das minhas primas, mais das minhas primas do que das minhas vizinhas, e mais das minhas vizinhas do que das desconhecidas”. A acompanhar a frase, perante 15 milhões de espectadores, a câmara mostrava a família feliz, constituída pela esposa, Pierrette, e as três filhas muito louras: Marie-Caroline, Yann e Marine.
O retrato idílico não iria durar muito tempo, poucos meses depois, a mãe de Marine foge com o biógrafo do pai. O divórcio é tumultuoso, Jean-Marie Le Pen sente-se traído. O caso ganha episódios de telenovela mexicana: Le Pen recusa-se a devolver as cinzas da mãe da mulher, e esta não lhe entrega o olho de vidro sobresselente que guarda na carteira. Le Pen afirma que, para a mulher não morrer na miséria, “só lhe resta rentabilizar o diploma de esteticista que tem ou acabará a limpar casas”. Dito e feito, Pierrete Le Pen, como resposta, aceita posar sem roupa na revista “Playboy”, a limpar o chão apenas com um avental. A revista titula: “Madame Le Pen nua faz a limpeza”. Nessa altura, as filhas ficam ao lado do pai. Marine Le Pen, com 19 anos, declara, à revista “Paris Match”, que “uma mãe é um jardim secreto não é uma fossa de detritos públicos”.
UM CONJUNTO DE GRUPÚSCULOS
Em 1972, nasceu a FN, originalmente com o nome Frente Nacional para a Unidade dos Franceses (FNUF). Este partido foi construído pela junção – preparada desde 1969 por Alan Robert, que vem, mesmo antes da formação do partido a romper com Jean-Marie Le Pen – de um conjunto de grupúsculos. Aqui convergem monárquicos, antigos colaboradores dos nazis, católicos tradicionais, antigos OAS [organização para-militar que se opunha à independência da Argélia e que tentou matar o general De Gaulle], contra-revolucionários. A Frente constituía “uma síntese de pequenos grupos isolados, sectários, totalmente afastados da realidade, embrulhados em conflitos e querelas dogmáticas e pessoais, mesmo antes de passarem à acção política”, descrevia um documento da Ordem Nova, umas das organizações que se junta à FN, citado por Michel Wieviorka, no seu “Le Front National, entre Extrémisme, Populisme et Démocratie”.
Nos anos 70, participam no movimento antigos colaboradores nazis como Roland Gaucher e Pierre Bousquet (combateu na divisão SS Charlemagne), ou gente vinda de grupos formados pela OAS, como François Duprat, da Jeune Nation. É aliás a Duprat, assassinado em 1978 na explosão de uma bomba na sua viatura, que soprará a Le Pen a frase: “um milhão de desempregados são um milhão de imigrantes a mais”.
François Duprat resume bem a confusão desses tempos, trotskista aos 16 anos, passa para as fileiras dos nacionalistas, torna-se teórico dos movimentos nacionalistas-revolucionários, o seu anti-semitismo leva-o a apoiar movimentos palestinianos anti-israelitas; torna-se informador dos serviços secretos franceses, sob o pseudónimo de “Hudson”; número dois da FN, e é assassinado à bomba, a 18 de Março de 1978, alegadamente por um movimento nacionalista rival.
A FN mantém-se completamente marginal, do ponto de vista eleitoral, até 1983, altura em que consegue entrar na câmara municipal de Dreux, aliada com a direita. Esta subida eleitoral explica-se por um conjunto de factores internos e externos: o fim dos chamados 30 anos gloriosos e o início das crises na Europa; a renovação ideológica da FN, com uma série de grupos de estudo onde se distinguia o GRECE (Grupo de Estudos para a Civilização Europeia); e a passagem do enfoque propagandístico do anticomunismo para o combate à imigração. Estas alterações permitem-lhe um crescimento continuado: em 1984, elegem 10 eurodeputados nas Europeias; em 1986, 35 deputados; e em 2002, apesar da cisão com Bruno Mégret que cria o Movimento Nacional Republicano, Jean-Marie Le Pen, consegue chegar à segunda volta das eleições presidenciais com 16,86% dos votos. É o ocaso de Jean-Marie Le Pen: depois disso, as votações caem para 10% dos votos, até que passa o testemunho à sua filha, Marine Le Pen.
No XIV congresso da FN, em 2011, quando Marine Le Pen triunfa, com 67% dos votos, sobre o antigo número dois do partido, Bruno Gollnisch, uma sondagem dá conta dos efeitos dessa mudança: 65% dos inquiridos consideravam Jean-Marie Le Pen como de “extrema-direita”, e apenas 37% dos sondados diziam o mesmo da sua filha. Marine Le Pen não gosta que lhe apodem de “extrema-direita”, prefere outros qualificativos: “se o governo do povo para o povo é populista, então eu sou populista”, afirma.
Numa conversa com o “Libération”, toma as devidas distâncias com a sua herança: Holocausto? Indochina? Argélia? “Cultura do século XX”, relativiza. Jean-Marie Le Pen? “Ele é ele, eu sou eu”, explica. Nessa altura ainda estava tudo em família, a actual esposa do pai, Jany Le Pen, diz a um jornal: “Ele [Jean-Marie] está feliz de transmitir [a FN] a alguém da sua carne e sangue mais que se o fizesse a um estrangeiro”.
Na altura, mais que uma mudança de fundo, a FN procurava alguém que pudesse fazer o mesmo que o seu líder de sempre mas seduzindo, uma espécie de perestroika – o problema das perestroikas é que nunca se sabe onde vão parar. Diz-se que o dirigente soviético Andrei Gromiko, conhecido no Ocidente por senhor niet (não), por causa dos seus anos de ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS, comentou durante a eleição de Gorbatchov: “a União Soviética precisa de alguém com um sorriso, mas um sorriso de ferro”, mas anos depois já não restavam muitos dentes ao esgar.
Mas nesses dias, na família FN, ainda se vivia o consenso. Um conselheiro de Jean-Marie Le Pen, Lorrain de Saint-Affrique – que conheceu Marine com três anos, numa comemoração familiar do 13º aniversário da tentativa de golpe da OAS na Argélia – dizia sobre ela: “O principal talento de Marine é a sua capacidade de dissimular a violência que ela tem nela, a sua verdadeira natureza é mandar, se ela não obtém o que quer tem ataques de fúria”.
Mas esta pretendida evolução na continuidade não se faz sem rupturas. Marine moderniza e torna mais aceitável para o eleitorado o discurso da FN, mas ao fazê-lo transforma-o, por vezes 180 graus. Jean-Marie Le Pen considerava Ronald Reagan o seu modelo para a política económica. “O meu modelo é Reagan”, garantia ufano, enquanto dizia: “Quero que o Estado desça das minhas cavalitas e tire a mão do meu bolso”. Depois da crise financeira global de 2008, Marine Le Pen mudou o discurso do partido: a FN quer um Estado forte e um Estado Social ainda mais forte. É preciso defender quem trabalha dos banqueiros e da globalização. É preciso recuperar a soberania. “A chave é o Estado, é necessário redescobrir o Estado”, afirma Marine no último congresso da FN, em 2011. De tal forma que um antigo dissidente da FN, Yves Blot, afirma, ao site Atlântico,”Marine Le Pen é a última marxista, Marine a vermelha”. É certo que o principal instrumento político da FN continua a ser o medo, mas os temas modificam-se: passa-se do perigo vermelho aos emigrantes, e destes aos muçulmanos. “A FN surfa sobre os quatros medos que existem hoje em dia em França e que permitem o seu enraizamento: mundialização, desemprego, Islão e Europa”, defende Jean-Paul Gautier no livro “De Le Pen à Le Pen – Continuités et Ruptures”. A forma como esconde o seu racismo e o torna aceitável é um elemento fundamental na sua transformação: a FN já não é xenófoba por pretender expulsar os imigrantes muçulmanos, defende a laicidade da república. Esta mudança de discurso, tendo em vista ganhar o poder, afecta muitos dos aspectos da FN: o partido anti-semita, homofóbico e racista transforma-se numa força que apoia Israel, diz defender os direitos das mulheres e homossexuais contra a lei islâmica, e o seu problema não é, garante, contra os negros, mas contra a ideologia muçulmana que constrói um Estado dentro do Estado e contra as leis da República Francesa.
Tudo está bem quando acaba bem. A mãe de Marine vive hoje dentro da casa da família, candidatou-se até nas eleições locais. E Marine Le Pen prepara-se para disputar a vitória nas presidenciais de 2017. Tudo se o pai estiver calado como um menir.