Ainda se lembra do primeiro poema que escreveu?
Depende muito daquilo a que chamarmos poema, mas deve ter sido por volta de meados da adolescência.
Quinze anos?
Talvez. Não comecei a interessar-me pela poesia muito cedo. Foi uma mistura de ler alguns livros que os meus pais tinham, alguma autodescoberta, indicações de amigos, mas não posso dizer que desde que me lembro que gosto de poesia. Posso dizer que desde que me lembro que gosto de cinema, a poesia foi um bocadinho mais tardio.
Esse seu primeiro poema ainda existe?
Espero que não [risos]. Aliás, eu aproveito cada livro que edito para tirar tudo o que não está no livro. De vez em quando há qualquer coisa que pode ser aproveitada mais tarde, mas não é regra. A regra é que um livro tem uma delimitação temática e temporal, e uma espécie de coerência, e os poemas que por qualquer razão não ficam no livro são destruídos.
E lembra-se da primeira vez que mostrou um poema seu a alguém?
No princípio dos anos 90, escrevia no suplemento DN Jovem e havia um grupo de amigos, alguns dos quais ainda mantenho. Uma das coisas que mais fazíamos era lermos os poemas uns aos outros.
Para si a poesia é inspiração, vocação ou ofício?
Um ofício é sempre, na medida em que quase ninguém publica poemas como os escreve pela primeira vez. Há sempre um ofício, um trabalho sobre as palavras. Se é uma vocação, depende do que isso quer dizer. Algumas pessoas acreditam nisso, mas eu não me revejo nessa palavra. Quanto a inspiração – existe certamente qualquer coisa parecida com inspiração, uma frase ou uma imagem que nos aparece na cabeça e escrevemos a partir daí. Mas isso não é o poema todo, isso é uma parte de um poema – um verso ou uma estrofe – depois o resto tem de ser conquistado.
Lê os seus poemas em voz alta para saber se estão a soar bem?
Sim. Isso é bastante importante, embora haja poéticas mais sonoras do que outras e poetas mais melodiosos do que outros. Os poetas de que eu gosto, naquela dicotomia um pouco fácil, privilegiam o sentido ao som. Mas mesmo aí o som é importante, não pode haver rimas involuntárias, cacofonias, tem de haver qualquer coisa que seja minimamente melódica. Não me interessa fazer poesia musical, mas sim, leio sempre alto.
Ainda faz sentido hoje escrever poesia em rima?
Depende muito das tradições. Em Inglaterra e nos Estados Unidos ainda há muitos poetas a escrever com rima e mesmo em Portugal há grandes poetas portugueses a escrever em rima – letras de canções, por exemplo, onde a rima é importante. Mas nunca foi uma forma em que eu me sentisse confortável, e é preciso ter um talento especial. Sou regularmente júri de concursos de poesia e há pessoas que acham que podem escrever como se estivéssemos nos anos 20 do século passado. Isso não funciona porque o nosso ouvido e o nosso gosto é muito diferente.
Existem regras para reconhecer a má poesia ou a boa poesia?
Para a má poesia existem certamente. Certo tipo de imagens batidas, sentimentalismo… Há clássicos, como as rimas em “ão” e em “ar”. Mesmo fora da rima há aquelas imagens que são impossíveis de usar porque são o contrário do poético.
Por exemplo?
Veloz como uma seta. Essas imagens são imprestáveis para um poema porque não tem nenhum grau de criatividade. Utilizam a linguagem no mesmo sentido em que as usamos no dia-a-dia.
No seu caso há algum estado de espírito que seja mais propício à criação poética?
O Wordsworth fala da poesia como “emoção recordada na tranquilidade”. Nalguma da poesia de que eu mais gosto, o poema é uma espécie de passo atrás, isto é, nem a alegria nem a tristeza captados nos momentos alegres ou tristes, mas depois de eles terem passado. O poema como registo imediato de um estado de alma em geral não é boa ideia.
Escreve mais à noite ou de dia?
Não tenho um horário, mas prefiro escrever à noite. Sempre que posso escrevo à noite.
À noite a que horas? Meia-noite, uma da manhã?
A minha vida profissional é muito sui generis, tenho o dia por minha conta, por isso a noite pode ser a qualquer das horas.
Quatro da manhã?
Sim, até ao romper da aurora. Normalmente deito-me muito tarde.
Escreve preferencialmente em casa?
Nem sempre foi assim, mas nos últimos anos escrevi a maior parte dos poemas em casa.
Antes escrevia onde? No café?
Sim. Sobretudo um livro que se chama “Eliot e outras Observações”, que é sobre Lisboa. Esses poemas foram quase todos escritos em cafés, não só porque na altura frequentava muito cafés como por ser uma espécie de local de observação privilegiado sobre a cidade.
Anda sempre com um caderno para o caso de lhe surgir uma frase ou uma imagem?
Sempre, sempre, sempre. Isso é muito importante. Em última análise escrevo no telemóvel.
Escreve à mão?
A primeira versão dos poemas sim. Já tentei escrever ao computador, mas em geral não funciona. A primeira versão é sempre à mão. Coisa que não faço em mais nada, não escrevo mais nenhum texto à mão se não a poesia.
Sendo a poesia uma forma de expressão muito íntima, não lhe causa algum constrangimento, ao lançar um livro de poesia, expor a sua a intimidade?
A ideia da exposição da intimidade é enganadora, porque as pessoas presumem sempre que sabem coisas que não sabem, fazem inferências baseadas em nada. Julgo que a intimidade diz respeito aos temas da poesia, todos os temas grandes da poesia são de certa forma íntimos – o amor e a morte são assuntos bastante íntimos. Mas um poema não é um diário.
Falemos agora concretamente do seu novo livro, “Uma Vez que Tudo se Perdeu”. Que imagem é esta da capa?
Quando me perguntaram o que tinha pensado para a capa, disse: “Não estou a ver nada, a não ser a torre do relógio da Figueira da Foz”. Uns dias depois mostraram-me uma proposta de capa e eu disse: “Pelos vistos saiu a minha sugestão”. Mas acontece que a pessoa que fez a capa não foi a mesma a quem eu tinha dito, e elas não tinham falado entre si. A pessoa que fez a capa leu o livro e também achou que essa era a imagem mais forte.
Era o local onde passava as férias?
Exactamente. Fui todos os Verões até aos 20 anos, por aí.
A ideia de perda está muito presente neste livro. É um tema que lhe interessa?
Praticamente todos os poemas que escrevi são sobre a passagem do tempo. Claro que a passagem do tempo inclui tudo o que acontece, mas não se trata só das coisas que acontecem, mas do facto de o tempo passar por elas. Alguém me disse que “Uma vez que tudo se perdeu” é um título pessimista, mas na verdade é factual porque literalmente tudo se perde, desde infância, a juventude, a saúde, a vida e até o universo – não há nada que dure para sempre.
Mas também há coisas que estão para vir.
Com certeza, mas escrever sobre o futuro é um exercício arriscado a que não me atreveria. O passado está cheio de coisas que acabaram, às vezes fisicamente, mas não acabam na cabeça de quem se lembra delas. Praticamente todos os poemas jogam com isso.
Fala como uma pessoa que parece que tem mais passado do que futuro. Mas só tem 43 anos… Tem a maior parte da carreira pela frente.
Do ponto de vista da esperança média de vida não sei se estou a meio… Não faço bem ideia. Isso tem a ver com uma tendência melancólica e pessimista que de facto eu tenho desde sempre, uma certa tendência para ver o copo meio vazio. Acho que isso está omnipresente em tudo o que escrevi.
Interessa-lhe escrever sobre a memória?
Sim, isso nasce até de um facto biográfico, que é eu ter muito má memória. A memória interessa-me porque a minha é fraca. Mas também me interessa porque a nossa identidade se constrói não com aquilo que aconteceu mas com aquilo de que nos lembramos e da maneira como nos lembramos. Há um filme absolutamente fascinante sobre isso chamado “Memento” em que o protagonista sofre de uma espécie de amnésia de curta duração e vai tatuando escrevendo as coisas para se lembrar. Mas a certa altura aquilo já é uma ficção, porque ele começa a escrever coisas falsas para depois se lembrar de uma forma errada. A poesia também faz um bocadinho isso.
Em que período foram escritos os poemas deste livro?
Praticamente todos nos últimos dois anos. Há sete ou oito mais antigos, mas estive vários anos sem escrever nenhum poema.
Encontra alguma razão para não ter escrito poesia durante esse período?
Sim, há muitas razões. Sentia um bocadinho que a poesia era uma falsidade. Isso teve a ver com muitas coisas – poéticas, biográficas e outras. Aquilo que me apetecia escrever não era passível de tradução num poema.
Deixou de acreditar na poesia?
Dito assim parece um bocadinho mais grandioso do que foi. Retrospectivamente posso dizer que pode ter acontecido algo como isso, mas nunca houve consciência dessa maneira.
Apercebeu-se do tempo em que tinha deixado de escrever?
Sim, em nenhum momento me esqueci de que não estava a escrever poesia. Foi uma coisa que esteve sempre muito presente que não estava a escrever.
E não o preocupava?
Preocupava. Aliás eu achei que não voltava a escrever. É o tipo de drama que não interessa a mais ninguém se não a mim. Mas para mim era certamente um problema.
Em que período foi isso?
Entre 2007 e 2014.
Refere por mais de uma vez a barreira dos 40 anos.
Nos poemas finais, sim.
A idade pesa-lhe?
Não foi nesse sentido. Há sempre umas marcas epocais naquilo que estou a escrever. Há por exemplo um poema que se chama a Casa dos 30, porque nos 30 aconteceram coisas muito importantes na minha vida.
Quais foram essas coisas importantes que lhe aconteceram?
É daquelas coisas que só têm interesse para o próprio.
Um dos poemas deste livro é sobre Pedro Mexía.
Exactamente, meu homónimo,
Como descobriu este poeta?
Descobri-o a primeira vez que me “googlei”, há muitos anos, e vi que havia umas centenas de milhares de referências a Pedro Mexía, todas sobre o escritor renascentista espanhol, um erudito. O meu screensaver é uma imagem do Pedro Mexía, um barbudo. Acho graça ter um escritor renascentista famoso no seu tempo com o mesmo nome que eu. Então descobri esse poema à morte dele, achei que havia ali umas camadas irónicas interessantes.
E para fazer algum paralelismo consigo?
Não. A personagem dele, de erudito, está muito distante da minha. Comprei um livro dele uma vez que fui a Espanha, por curiosidade, para ter na estante, é um especialista nos clássicos, como era normal no Renascimento, mas é simplesmente a graça do nome, não tem nenhuma outra proximidade.
Leu o livro?
Li algumas coisas, mas é daqueles livros cheios de referências à literatura da antiguidade clássica, não é muito fácil.
Disse que o facto de deixar de escrever só a si dizia respeito. Não tem leitores fiéis?
Muito poucos, como toda a gente que escreve poesia. O que é bom porque liberta um bocadinho: não há expectativas, não existe um mercado da poesia, sinto-me mais livre de escrever.
Tem leitores fiéis?
Sim. Há dois tipos: os leitores de poesia e um conjunto muito engraçado de coleccionistas, que de vez em quando dizem: “Não tenho o seu segundo livro”. O núcleo de pessoas que lê poesia de autores portugueses vivos é pequenino. Os poetas que vendem muito vendem algumas centenas; os que vendem pouco vendem pouquinhas centenas.
Saiu agora outro livro seu, “Biblioteca”, que gostaria de usar como pretexto para falar sobre a sua biblioteca pessoal.
Muito bem.
De que tamanho é a sua biblioteca?
Não sei bem porque neste momento tenho uma biblioteca visível e uma biblioteca encaixotada. Não sei quantos livros tenho, mas tenho certamente muito mais do que o espaço disponível. Compro muitos livros, recebo muitos livros, mas nunca soube quantos eram, nem é importante.
Quais são as suas principais áreas de interesse?
Poesia, ensaio literário. E tenho muitos livros sobre cinema. Depois tenho bastantes romances, mas a minha biblioteca de romances não é anormal para quem tenha bastantes livros.
Qual é o mais valioso?
Comecei timidamente a fazer algumas incursões em alfarrabistas mas tenho alguma prevenção em relação a isso porque é uma droga dura. Tenho algumas primeiras edições de autores de que gosto muito, como o Vitorino Nemésio ou a Agustina, mas não creio que tenha muitos livros valiosos desse ponto de vista. Agora, tenho alguns que hoje não se encontram, isso tenho. Mas se houver uma edição moderna do livro, a não ser que seja um dos meus autores favoritos, não tenho interesse em ter a primeira edição. E há autores de quem tenho os livros todos – e até tenho edições em várias línguas. Por exemplo, o Beckett, posso ter o Beckett em italiano.
E a nível afectivo?
Há livros que me abriram caminhos, por exemplo um livro dos poemas do Hölderlin pelo qual a minha mãe estudou. Foi um dos primeiros contactos que eu tive sobre uma certa ideia da poesia. Ou um livro que eu comprei no princípio da faculdade, é só um poema de T.S. Eliot, “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”. Foi o poema que me fez querer escrever poesia.
Tem livrarias favoritas?
Já não há muitas livrarias em Lisboa, pelo que acabo por comprar muitos livros online, que foi uma coisa a que resisti muito.
Porquê?
Porque é demasiado fácil. Sou como aqueles jogadores que não entram no casino para não se arruinarem, por isso tinha uma certa relutância em comprar livros clicando no rato. Até ao momento em que havia livros que me interessavam e não estavam nas livrarias. Aí pensei não valia a pena resistir mais. Claro que é perigosamente fácil comprar livros online e perde-se muito facilmente o controlo da situação.
Tem um plafond mensal?
Tenho um plafond intuitivo. Não vou fazer contas para não me assustar, mas é um bocado como no álcool: as pessoas sabem quando ultrapassaram o seu limite.
Gasta muito dinheiro em livros?
É a coisa em que gasto mais dinheiro, tirando as actividades normais de subsistência – e viajo de vez em quando. Tudo o resto é gasto em livros.
Há pouco não me disse quais eram as suas livrarias favoritas.
A única livraria com que tive uma relação afectiva, foi a Buchhholz, que não é a Buchholz de hoje, era mais bem abastecida, mais desarrumada. Era lá que eu ia quando comecei a ganhar dinheiro e a fazer a minha biblioteca. Até por ser um pouco caótica, descobria os livros. Ficava lá quando não tinha aulas ou depois de sair das aulas e ia descobrindo ensaio, política, filosofia. Foi a única que me custou ter fechado.
E hoje, quais frequenta?
Há livrarias mais especializadas. A Pó dos Livros, por exemplo, livrarias em que as pessoas que estão a vender sabem o que estão a vender. Uma vez fui a uma livraria em Nova Iorque e nunca tinha tido aquela sensação: olhava para todos os lados e não via nenhum livro mau. Não havia nenhum livro mau, o que quer dizer que eles perdiam dinheiro porque não havia nenhum dos bestsellers. Foi refrescante entrar numa livraria e dizer: isto é tudo bom.
Costuma comprar livros quando viaja ao estrangeiro?
Tenho uma colecção de segundas malas: a mala com que eu fui e a segunda mala que comprei [risos]. Agora com a net isso põe-se menos.
Disse numa entrevista ao Luís Osório, publicada no i, que em jovem era muito pouco social. O que ficava a fazer enquanto os seus amigos iam a festas ou sair à noite? A ler, a escrever poesia, a cultivar-se?
Aquilo que faço hoje durante grande parte do tempo foi aquilo que comecei a fazer no final da adolescência – ler e ir ao cinema. Grande parte da minha vida foi passada ou a ler ou numa sala de cinema. Na altura até ia mais ao cinema, via tudo o que me interessava. Havia menos livros e livro comprado era livro lido. Hoje em dia essa proporção já se perdeu de vista. Mas o cinema e a literatura sempre foram as coisas que me interessaram mais. Há uma canção do Dylan que diz: “I was so much older then, I’m younger than that now”. E eu sinto um bocadinho isso. Nunca fui muito novo mas acho que era mais velho aos vinte anos do que sou aos quarenta.