Os processos de simplificação da história são sempre perigosos e ainda mais perigosos se tornam quando procuram servir objectivos políticos. Se as simplificações forem acompanhadas de alguns mitos recorrentes (idade de ouro, eterno retorno, culpa e expiação, vingança pelas afrontas sofridas…), apresentadas em formato audio-visual e disponibilizadas nas redes sociais, temos o quadro perfeito para a manipulação das almas crédulas.
A partilha das províncias árabes do império otomano levou ao desenho artificial, a régua e esquadro pela dupla anglo-francesa Sykes-Picot, de um conjunto de protectorados que vieram a dar origem, “tant bien que mal”, ao Iraque, Síria, Líbano, Jordânia, Palestina e Israel. A artificialidade das fronteiras, a falta de estruturas estaduais centralizadas, a multiplicidade de grupos étnicos e religiosos (católicos, ortodoxos, sunitas, chiitas, maronitas, alauitas, árabes, judeus, drusos, curdos, beduínos,…) e a duplicidade britânica no formular de promessas incompatíveis a árabes e a judeus deram origem à denominada questão do Médio Oriente (MO).
Se o MO sofre com a ausência de uma potência dominante, tem beneficiado em excesso dos conflitos entre candidatos a tal estatuto por parte das diversas potências regionais (Egipto, Turquia, Iraque, Irão, Síria, Líbia, Árábia Saudita e, mais recentemente, das petromonarquias do Golfo Pérsico, com destaque para o Qatar) e das rivalidades entre EUA e Rússia que, oh surpresa!, não acabaram com o fim da guerra fria. Reino Unido, França, Itália e Alemanha (esta apenas no plano diplomático e económico) tentam fazer prova de vida e distribuem com parcimónia apoio económico, político e militar às respectivas clientelas.
A insustentável involução do “processo de paz no MO”, o retomar do mito da unidade árabe, a distribuição generosa de dólares, propaganda, armas e explosivos por parte das potências regionais, a diáspora árabe pelo mundo, com uma segunda geração frustrada e desempregada nos subúrbios das cidades europeias, e as redes sociais globalizaram a “questão do MO”. Primeiro a Europa e agora os EUA descobriram que o “inimigo está dentro de portas”. Já não há que lutar contra terroristas no exterior (o clássico dos anos 70 e 80 em que os cidadãos americanos eram feitos reféns em países terceiros), ou contra os terroristas vindos do exterior para atacarem no interior dos Estados ocidentais (o epítome do 11 de Setembro).
A ideia de uma nação federando as antigas províncias árabes do império otomano é suficientemente apelativa para permitir ao Daesh uma propaganda global que atrai jihadistas, simpatia política na rua árabe e doações vultosas. O projecto de um novo califado, à imagem do califado de Damasco, permite passar à próxima fase do programa político do Daesh: a resistência à nova cruzada contra o califado. É preciso atrair as tropas ocidentais ao califado para poder apelar à luta contra os novos cruzados.
Obama e a maioria do Ocidente (com a excepção de Hollande, procurando na acção externa os votos que o Front National lhe tirou) não estão disponíveis para uma intervenção militar com tropas no terreno. A alternativa de utilizar um ou vários dos bandos armados que alegremente se matam no MO pode limitar o território ocupado pelo Daesh mas não diminuirá o fascínio por ele exercido.
O atentado em San Bernardino modificou por completo a agenda política nos EUA e a campanha eleitoral para as presidenciais. Donald Trump, com a rapidez dos demagogos, já o percebeu.