o rosto de outros tempos, de outra forma de fazer política, do tempo dos dinossauros que se perpetuavam no poder autárquico até caírem de cansaço. Esta semana foi condenado a dois anos e dez meses de prisão pelos crimes de abuso de confiança e de falsificação de documentos, pena que será suspensa se entregar 35 700 euros à Associação de Apoio à Pessoa com Cancro da Senhora da Hora, verba que supostamente desviou para seu uso pessoal da Associação Matosinhos Sempre. Narciso Miranda foi presidente da Câmara de Matosinhos durante 29 anos, tempo em que se tornou numa espécie de Hugo Chávez local. Jogava muito do seu sucesso nos mercados locais e adorava ter como guarda-costas as mulheres que viviam do peixe que vendiam.
Portugal tinha saído de um regime totalitário e a classe política que alcançou o poder local após o 25 de Abril de 74 deixava muito a desejar. O populismo era o principal trunfo e, para uma população pouco instruída, vendedores de pechisbeque eram autênticos doutores. O seu percurso é um belo retrato do país quando quem detinha o poder autárquico pouco ou nada era averiguado. Obras monstruosas foram feitas do Minho ao Algarve durante a década de 70 e 80, e à frente da maioria das câmaras estavam homens que se aproveitavam do novo tempo de liberdade. Narciso Miranda adorava aparecer na televisão e nos jornais, e emanava uma confiança fora do vulgar. As ruas eram o seu palco predilecto e dessa forma começou a subir na estrutura do PS – nos outros partidos do arco da governação não faltam almas gémeas. Afastou-se do partido em 2004 depois de uma rixa entre camaradas num mercado, evidentemente, em vésperas de eleições europeias, que provocou a morte a Sousa Franco, depois de uma paragem cardíaca.
Foi presidente da Federação Distrital do PSdo Porto até 2002, sendo substituído por Francisco Assis, tendo ainda sido secretário de Estado do governo de António Guterres.
Os juízes que o julgaram no processo consideraram as suas declarações tão “inverosímeis como fantasiosas”, mas o ex-autarca não se dá por vencido e já disse que vai recorrer da sentença. Aos 66 anos, este dinossauro do poder autárquico já não deve ter ambições políticas, mas a sua vida pública nunca mais será a mesma se se confirmar a condenação e transitar em julgado.