Os livros fazem parte da guerra, ajudam-nos a perceber os conflitos, mas também justificam formas e procedimentos usados pelos grandes deste mundo. As guerras desencadeiam-se com força bruta, mas exigem de consensos e narrativas que as sustenham: os Estados Unidos da América para invadirem o Iraque precisaram que muitos acreditassem na presença de armas de destruição em massa no exército de Saddam; o derrube de Kadafi com apoio de exércitos ocidentais pediu que acreditássemos no carácter democrático da oposição, em contraposição à selvajaria da ditadura líbia. A facilidade com que bombardeamos os árabes e outros povos do chamado Terceiro Mundo exige uma cultura que não liga aos mortos no Mali e em Beirute e só considera seres humanos de primeira aqueles que morrem em Paris, Madrid ou Nova Iorque.
Conhecer bem é um antídoto eficaz, mas naturalmente é necessário ver sempre com um olhar crítico aquilo que está à nossa disposição. Quem escreve tem os mesmo desvios ideológicos que todos os mortais; só os melhores conseguem transcender isso.
“Quando iniciámos a descida da garganta, o condutor russo ao meu lado puxou a sua mochila de trás do assento, abriu as correias e ofereceu-me uma laranja. ‘Olhe para cima, por favor’, disse ele. ‘Olhe para cima das colinas.’ Quase incrédulo, percebi o que estava a acontecer. Enquanto ele se debatia contra o gelo com o volante do camião, pedia-me que vigiasse o cimo da montanha à procura de homens armados. A laranja era a minha paga para o ajudar. Lentamente, começávamos a atrasar-nos em relação à coluna. ‘Agora vigie o lado direito da estrada’, acrescentou ele. ‘Diga se vir alguém.’ Fiz o que me mandou, tanto por causa dele como por minha causa”, assim descreve o jornalista britânico Robert Fisk um momento das suas reportagens no Afeganistão. O homem que cobriu durante anos os conflitos no Médio Oriente e na Ásia tinha como todos os jornalistas as suas ideias, e vivia os seus conflitos deontológicos: aceito ajudar o motorista ou não? “Fiz o que mandou, tanto por causa dele como por minha causa” é uma excelente resposta do autor de um dos maiores livros para percebermos onde chegamos nessa região do mundo. “A Grande Guerra Pela Civilização – A Conquista do Médio Oriente” é de 2005, mas continua a ser um companheiro seguro para entender os dias de hoje. Quase no fim, página 1142, descreve o momento em que Bin Laden apela a que os jihadistas se juntem aos antigos companheiros de Saddam Hussein no combate aos americanos: “Foi neste momento que o futuro exército de guerrilha se fundiu com os futuros bombistas suicidas, foi esta detonação que engolfaria [sic] o Ocidente no Iraque. E nós nem sequer nos demos conta.” Bem-vindos ao Estado Islâmico, de Al-Zarkawi a Al-Baghdadi.
Será islâmico o autoproclamado Estado Islâmico? Será o Estado Islâmico um Estado? Qual é a história do Estado Islâmico? Quem o apoia e está por detrás dele? Poderemos ver-nos livres dele? Estas são algumas das perguntas a que é interessante responder. As coisas nunca são a preto-e--branco, mesmo quando são negras com o Daesh. “Vocês só vêem execuções”, explica um membro do EI citado no livro de Loretta Napoleoni, “mas todas as guerras têm as suas execuções, os seus traidores, os seus espiões. Nós abrimos refeitórios, reconstruímos escolas e hospitais, repusemos a água e a electricidade, pagámos por comida e por combustíveis. Enquanto a ONU não conseguia sequer fazer chegar a ajuda humanitária, nós vacinámos crianças contra a poliomielite. Acontece que algumas acções são mais visíveis que outras. Por cada ladrão que punimos, vocês castigam cem crianças com a vossa indiferença”, diz esse elemento do EI. Até para dar cabo do terror é preciso perceber onde ele se alicerça.
Num artigo da revista “Atlantic”, Graeme Wood defende que não é possível absolver o islão dos actos do Estado Islâmico, para ele este tipo de acções deriva de uma leitura dos textos sagrados que o Alcorão alberga e justifica. “O autoproclamado Estado Islâmico não é um simples grupo de psicopatas. É um grupo religioso com crenças cuidadosamente pensadas, entre elas a de que será o agente do apocalipse que se aproxima”, garante. O director do CNRS Olivier Roy, autor de vários livros, entre os quais “L’ Échec de l’Islam politique”, em que defende a tese de que foi o fracasso político do islão que levou à multiplicação dos movimentos islamitas, escreveu recentemente no “Le Monde” um artigo em que contraria esta ideia da inscrição no ADN do islão dos actos do Daesh: “Não estaríamos perante uma radicalização do islão, mas de uma islamização da radicalidade.” O descontentamento de alguns sectores particulares da juventude europeia e dos países árabes vestia as vestes do islão para se radicalizar, e não era o a religião muçulmana que explicaria essas acções. No entanto, é obvio que o caldo religioso que levou à criação do salafismo, do o salafismo quietista ao salafismo jihadista passando pelo salafismo político, criou uma roupa que permite e sustenta do ponto de vista ideológico organizações como o Estado Islâmico. Nada pode ser explicado sem se perceber o papel único da Arábia Saudita na divulgação do wahhabismo, uma interpretação particular e restritiva do islão, aos sunitas, permitindo a existência de correntes takfires, que consideram que só essas ideias salafistas seguem a religião muçulmana e que todos os outros crentes são infiéis que podem ser liquidados. Este processo encontra-se muito bem explicado em “Estado Islâmico – Estado de Terror”, de Jessica Stern e J.M. Berger.
Para percebermos de que forma este tipo de interpretações deturpa uma religião professada por 1600 milhões de seres humanos, é muito interessante consultar o livro do teólogo católico Hans Kung, aí se analisa a história dessa religião, e as várias correntes e possibilidades que abriu. O autor pretende responder à ideia, que tem como seu cultor mais conhecido Samuel Huntington e o seu “Choque de Civilizações”, de que o islão é inevitavelmente um inimigo violento, como se o conflito não estivesse inscrito em determinadas condições sociais e históricas, mas no núcleo de uma religião.
A situação que vivemos hoje foi semeada pelas bombas que pretenderam “libertar” o Iraque de Saddam, a Líbia de Kadafi, a Síria de Bashar al-Assad, mas também pelo fracasso absoluto dos modelos de desenvolvimento de muitos estados do Médio Oriente. As fronteiras dos países árabes foram traçadas a sangue e com régua e esquadro pelo colonizador ocidental. Mas a situação actual não é apenas de responsabilidade colonial, envolve muitos agentes locais. Desse ponto de vista, um livro próximo das teses ocidentais sobre o EI, “ISIS – Por dentro do Estado do Terror”, tem a virtude de nos mostrar o baile macabro das alianças e contra-alianças do presente: como restos dos regimes “socialistas” árabes se aliaram a salafistas contra as invasões dos EUA e depois acabaram imersos nas criaturas que ajudaram. A obra tem apenas o grande defeito de ignorar o papel das invasões dos EUA, da Arábia Saudita e das guerras regionais entre estes e o Irão.
Duas das obras mais interessantes são “The Rise of Islamic State”, de Patrick Cockburn, e “A Fénix Islâmica”, de Loretta Napoleoni. Nas suas páginas conseguem-se perceber, ainda antes da intervenção russa, as grandes linhas políticas de fractura. É muito interessante compreender que este conflito fez implodir as fronteiras coloniais e pôs no terreno novas realidades. “O Estado Islâmico não é apenas uma nova forma de terrorismo, mas um fenómeno verdadeiramente moderno. Poderá ser esta a principal razão do seu êxito? É possível. Ao passo que o Ocidente e os seus aliados muçulmanos se recusaram a reconhecer o advento de uma nova paisagem internacional, o Estado Islâmico não apenas se adaptou a ela, como a explorou o mais possível em seu proveito”, garante Loretta Napoleoni.
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