Em Dezembro de 1974, com o Natal à porta, uma mulher franzina saía da Cadeia das Mónicas, sob escolta militar, em direcção ao Hospital de Caxias. Magríssima e em greve de fome desde o início do mês, Maria José Morgado, militante convicta do MRPP, insistia em não comer.
A ordem de prisão tinha chegado a 6 de Novembro, meses depois da revolução. Justificada, segundo o Estado-Maior General das Forças Armadas, por “forte suspeita da prática de crime de associação de malfeitores”. Primeiro foi levada para a Cadeia de Tires, onde também estavam presas mulheres que tinham pertencido aos quadros da PIDE. E Maria José, antifascista inflamada, achou indigna a partilha de espaço com as ex-funcionárias e entrou em greve de fome.
No ano seguinte abandonava o MRPP – para onde chegou a recrutar Durão Barroso –, juntamente com o marido, o histórico fiscalista e também militante do movimento Saldanha Sanches. Ela tinha 24 anos, queria ser mãe e Laura nascia pouco tempo depois. Saldanha Sanches viria a morrer em Maio de 2010 no Hospital de Santa Maria. Na homenagem que lhe fez, Maria José, a invencível, fez-se frágil. “Vai faltar-me a tua mão a agarrar na minha enquanto passeávamos e conversávamos”, confessou.
Nesse ano o “Expresso” elegeu-a “mulher mais poderosa de Portugal”. Pelas mãos passavam-lhe – e já tinham passado – alguns dos mais importantes processos judiciais do país, dos hemofílicos de Leonor Beleza à montanha do Apito Dourado, passando pela demorada condenação de Vale e Azevedo. A carreira no direito delineou-se ainda na década de 1960, quando entrou para a Faculdade de Direito de Lisboa – onde se cruzou com o MRPP e onde os colegas lhe chamavam Misé Tung –, depois de ter passado a infância em África. O pai, transmontano originário de uma aldeia chamada Carlão, no concelho de Alijó, embarcou para Angola para se tornar administrador de posto em Nambuangongo.
Em 1979, Maria José Morgado entrou para o Ministério Público. Passou, em 2000, pela Polícia Judiciária, onde chefiou a investigação da corrupção e do crime económico. Apresentou resultados, mas acabou por sair dois anos depois em colisão com o então director, o juiz Adelino Salvado. Depois disso passou pelo Tribunal da Relação, onde foi procuradora-geral adjunta e desde 2007 liderava o Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa. O novo cargo, anunciado ontem e para o qual foi eleita por unanimidade, é mais um degrau na carreira: vai passar a coordenar, aos 64 anos, todos os departamentos e serviços do Ministério Público do distrito judicial de Lisboa.
Ao contrário da antecessora, Francisca Van Dunem – que saiu para ocupar a pasta da Justiça no novo governo de António Costa –, nunca fez questão de ser discreta. Maria José Morgado disse sempre tudo o que quis dizer. Como há menos de dois anos, quando reagiu às mudanças impostas ao Ministério Público pela reforma do mapa judiciário – a que chamou, no “Expresso”, a “reforma da furgoneta”: avisou que a investigação criminal seria prejudicada. O seu sucessor no DIAPsó será escolhido só daqui a duas semanas, na próxima reunião do Conselho Superior do Ministério Público.