O que espera deste executivo liderado por António Costa?
Estamos a viver um novo ciclo político, há uma mudança muito significativa a acontecer no sistema político. Espero, no quadro dos acordos feitos, que se comece de uma vez por todas a quebrar este maldito ciclo de empobrecimento e de austeridade.
Este governo sofre de alguma falta de legitimidade?
Os governos têm de ser aprovados ou rejeitados pela Assembleia da República. Não há nenhuma dúvida de que lado é que está a maioria na Assembleia, não há nenhuma dúvida de que o governo PSD/CDS não tinha apoio parlamentar para dar seguimento ao seu programa de governo. A legitimidade é conferida pelo voto. O voto dos portugueses e das portuguesas a 4 de Outubro foi muito claro: retirou 800 mil votos à coligação de direita…
Mas deu-lhe a vitória, ainda assim…
Que o PSD e o CDS foram a força mais votada, é indiscutível. Mas o que é uma vitória num contexto parlamentar? Ter tido mais votos não retira o facto de [PSD e CDS] não terem maioria no apoio parlamentar. Eu acho que foi a maior derrota da noite eleitoral. Tiveram mais votos no conjunto, mas não conseguiram reproduzir a maioria absoluta que tinham, perderam muitos votos, houve um sinal claríssimo por parte dos eleitores.
Desse ponto de vista, de clareza quanto aos equilíbrios parlamentares, não faz sentido o que fez o Presidente da República, ao indigitar primeiro Pedro Passos Coelho como primeiro--ministro?
O Presidente da República tinha toda a legitimidade política e formal para indigitar Passos Coelho. Com a informação que tinha disponível, já sabia que esse apoio maioritário não iria existir, mas não é essa indigitação que coloca Cavaco Silva de um lado do espectro político. Na realidade, esse foi mais um dos episódios em que o Presidente mostrou que não era Presidente de todos os portugueses e que sempre esteve ao lado dos seus. Agora, o que disse, para além da indigitação, é que é muito grave…
Se fosse Presidente da República, não teria indigitado Passos Coelho?
Teria indigitado António Costa, uma vez que neste contexto era quem dava garantias de ter uma maioria parlamentar e de ter estabilidade para poder continuar a governar. Da mesma forma que, se me chegasse à frente Pedro Passos Coelho com a garantia de apoio parlamentar, faria a indigitação. É uma questão de democracia, não é uma questão de preferências. O Presidente da República, que tanto falou de estabilidade, tornou–se o maior factor de instabilidade em Portugal. Do que eu gostava era que o Presidente da República tivesse aceitado, com a mesma naturalidade, esta nova configuração, este novo equilíbrio de forças na Assembleia da República em 2015, como aceitou com naturalidade em 2011. Mas teve uma posição absolutamente enviesada e a contragosto. Não se pode tomar decisões sobre indigitações de governos em função das conveniências, em função das preferências pessoais, tem de se respeitar a vontade do povo português.
Cavaco Silva não tem razão quando levanta questões, por exemplo sobre a estabilidade do governo?
Ao Presidente da República cabe aceitar serenamente os resultados da democracia. Instabilidade foi o que provocou o Presidente. A preocupação de Cavaco Silva com a estabilidade foi totalmente contradita pela sua acção. Se ele tem dúvidas quanto à estabilidade deste governo, teria seguramente certezas de que a coligação de direita não tinha maioria na Assembleia da República.
Acredita que este governo vai durar uma legislatura?
Acredito que haverá certamente muitas dificuldades, há factores que não se controlam, sobretudo se pensarmos no contexto externo, mas a partir do momento em que se apresenta essa proposta deve ser uma proposta para durar.
Enquanto Presidente da República admitiria demitir este governo em alguma circunstância?
Admitiria demitir um governo se entrasse em clara contradição com a Constituição. Não admito demitir um governo porque se está a cumprir a democracia.
É contra o Tratado Orçamental. A ser eleita, defenderia o não cumprimento do Tratado?
Para mim há uma questão fundamental que, aliás, vem no primeiro artigo da Constituição: Portugal é um país independente e soberano. Acho que se devem respeitar os compromissos internacionais, com as instituições europeias, mas não há nenhum compromisso que se sobreponha à Constituição portuguesa. E o meu compromisso enquanto Presidente seria, obviamente, o de fazer cumprir a Constituição. Dito isto, o Tratado Orçamental é intergovernamental, não faz parte do quadro jurídico europeu, não tem a força de tratado europeu.
Mas há compromissos assumidos pelo Estado português…
Acredito que há formas diferentes de garantir que esses compromissos são assegurados sem pôr em causa a nossa lei fundamental.
Concorda com António Costa quando ele diz que pode haver uma interpretação inteligente dos tratados?
Eu tenho uma posição diferente da de António Costa relativamente ao Tratado Orçamental. Mas, desde logo, não é parte do quadro jurídico da União Europeia. Poderá vir a ser um dia, mas não é. Não se pode tratar por igual aquilo que é diferente.
Há condições na Europa, nesta altura, para uma mudança no que tem sido a política europeia em termos orçamentais?
Há todas as condições, o que falta é a vontade política.
É uma determinante muito importante…
Falta uma dimensão muito mais forte do que é um tratamento justo e igual dos diferentes países. Uma União Europeia que adoptou uma mão tão forte com os mais fracos e tão leve com os mais fortes, e que deixou de lado a questão dos excedentes, mas criminalizou os défices… é pôr à prova os limites da resistência. Eu não acredito que o projecto europeu sobreviva muito tempo a um nível tão grande de divergência e de desequilíbrios macroeconómicos como temos agora. Portanto, o caminho terá de ser necessariamente o do aprofundamento da igualdade e da coesão económica e social. Não é preciso inventar a roda. É só ter um tratamento justo relativamente aos diferentes países.
Há um país e um partido, o Syriza – que, aliás, teve o seu apoio –, que tentaram um caminho alternativo. Com o resultado que se viu…
Nesse processo, não foi apenas o governo grego ou o povo grego que perdeu, perdemos todos, europeus. Alguém de nós se identifica com aquela forma de fazer Europa de humilhação, de chantagem, de ignorar completamente a vontade democrática de um povo, de fazer crer que há países de primeira, de segunda e de terceira? Repare-se: agora que discutimos as questões do Reino Unido e do Brexit [Britain exit], David Cameron impõe um conjunto de condições inaceitáveis e em total contradição com os tratados europeus, e o que se diz? A algum acordo havemos de chegar, desde que se respeite a vontade democrática do povo inglês. Eu estou de acordo, desta vez, com a Comissão Europeia. Gostava era que houvesse a mesma vontade de respeitar a vontade democrática de todos os outros povos.
Mas o caso da Grécia ficou como aviso aos países que achem que podem ter uma alternativa…
Não, pelo contrário. O aviso que fica é que tem de haver mesmo alternativa.
As sondagens dão Marcelo Rebelo de Sousa largamente à frente nas intenções de voto. Acha que ainda é possível reverter este cenário?
A última sondagem que saiu já o mostrou. Marcelo Rebelo de Sousa – que, não há nenhuma dúvida, neste momento é o candidato mais bem posicionado – não tem necessariamente de ganhar as eleições à primeira volta. E se o candidato da direita não ganhar à primeira volta e a esquerda se unir numa segunda volta, pode haver mesmo uma hipótese de não termos Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República.
O BE apoiará qualquer candidato que passe à segunda volta contra Marcelo Rebelo de Sousa?
Estamos a começar um caminho, sei que esta é a última candidatura a ser apresentada, há muito caminho por fazer. O objectivo primeiro e central é disputar a passagem à segunda volta. Depois falaremos…
E se a adversária de Marcelo numa segunda volta for Maria de Belém, que é um nome que levanta muitas reticências ao Bloco?
Isto é uma questão política, não é uma questão pessoal. É muito bom que haja mais candidatas mulheres. Isso é muito positivo e não é excepção no caso da dra. Maria de Belém ou qualquer outra candidata de qualquer área política. Se metade da sociedade portuguesa é composta por mulheres, não temos de andar sistematicamente à espera de ser representadas pela outra metade…
Mas a questão é política…
A questão é política. E, politicamente, afasta-me da dra. Maria de Belém, por exemplo, a questão da intersecção de interesses do sector financeiro com a política. Eu acredito verdadeiramente que a política pode ser totalmente livre de interesses e que o único interesse a determinar a política seja o interesse colectivo. Não me parece compatível o exercício de funções de presidente da comissão parlamentar de Saúde, ao mesmo tempo que se tem uma avença com o grupo Espírito Santo Saúde. Eu sei que a dra. Maria de Belém já veio dizer que não havia nenhuma incompatibilidade. Eu tenho um entendimento diferente. Acho que há sempre incompatibilidade quando se exercem cargos políticos, públicos, e ao mesmo tempo se tem compromissos com o sector privado na mesma área. A dra. Maria de Belém não é seguramente a minha maior opositora nesta corrida, mas há questões políticas em que estamos afastadas. Por exemplo, defender, como já defendeu, que o preço dos medicamentos devia ser definido em função dos rendimentos é atacar as próprias bases e os alicerces do Serviço Nacional de Saúde.
Mas, politicamente, diria que há diferenças entre Maria de Belém e Marcelo Rebelo de Sousa?
Marcelo Rebelo de Sousa é o candidato da direita. Teve muitos anos de exposição mediática, teve a oportunidade – que muito pouca gente tem – de poder falar todas as semanas aos portugueses. Nesses anos todos falou sobre tudo e sobre nada. Mesmo. Desde tácticas de futebol à promoção do leitão da Bairrada, ouvi–o falar de imensas coisas. Agora que é candidato, estranhamente, tem posições muito pouco claras relativamente seja ao que for. Não esclareceu ainda se convocará eleições ou não se assumir a Presidência. É inteligente nas formulações que utiliza, mas enigmático. Mas houve um silêncio absolutamente avassalador. Marcelo Rebelo de Sousa nunca usou esse espaço que tinha para defender a Constituição quando foram atacados os salários, as pensões, os direitos dos trabalhadores. Esse silêncio foi demasiadamente ruidoso. Que garantias dá de que vai defender os direitos sociais, os direitos dos trabalhadores, se quando tinha toda a liberdade do mundo não o fez?
Marcelo Rebelo de Sousa tem sido bastante crítico da actuação de Cavaco Silva. Diria que é táctica eleitoral?
Não foi só Marcelo Rebelo de Sousa, houve outros comentadores muito conotados com a direita que o criticaram. Houve um momento em que passou a ser uma questão de bom senso: um Presidente da República que expulsa um milhão de portugueses numa declaração e que diz que há votos que contam mais do que outros… A dada altura [a acção de Cavaco] já não era defensável mesmo por quem está do mesmo lado ideológico.
Marcelo está a tentar chegar ao eleitorado de centro-esquerda?
Se calhar andam muitos candidatos a disputar o centro, e ele não é excepção. Mas não deixa de ser o candidato da direita.
Admite, em alguma circunstância, desistir na primeira volta?
É para ir até ao fim.
Que avaliação faz dos dez anos de mandato de Cavaco Silva?
Foi um Presidente da República muito tendencioso que nunca foi e nunca quis ser o Presidente de todos os portugueses e de todas as portuguesas. E que falhou muitas vezes no cumprimento do seu principal juramento, que foi o de defender a Constituição. Foi um Presidente muito mais próximo dos seus amigos e da sua família ideológica, e de interesses particulares, do que propriamente próximo dos portugueses.
Cavaco deixou uma espada a pairar sobre este governo?
É um bocadinho incompreensível ver um Presidente da República ter declarações como as que teve Cavaco Silva nos últimos tempos, nas diferentes fases. Dar posse a um governo com uma ameaça a pairar mostra como foi um Presidente que actuou de acordo com as suas conveniências. Mas a democracia é mais forte que as conveniências. Um Presidente tem funções que estão muito para além das suas preferências pessoais. E se houvesse dúvidas sobre a importância dessas funções, elas ficaram completamente dissipadas nos últimos tempos, quando se percebeu como aquele que deve ser o árbitro da democracia apitou sempre para o mesmo lado e para a mesma equipa, e aquele que deve ser o maior factor de estabilidade se converteu no maior factor de instabilidade e mesmo de bloqueio ao regular funcionamento das instituições. É muito difícil identificar aspectos positivos na Presidência de Cavaco Silva.
Como é que, enquanto Presidente da República, olharia para um Orçamento do Estado austeritário?
Cabe a um Presidente olhar para o Orçamento do Estado e ver se está de acordo com a Constituição. Obviamente, acredito que muitas das medidas de austeridade são incompatíveis com a Constituição.
Isso quer dizer que chumbaria alguns dos Orçamentos dos últimos anos…
Muitas coisas não as teria deixado passar seguramente, não ao ponto de ter de se ir ao Tribunal Constitucional.
O que é que, no seu currículo, a indica para estas funções a que se candidata?
Se achasse que não acrescentaria rigorosamente nada, não me teria apresentado. Acho que conheço bem Portugal a partir de dentro e a partir de fora. Conheço o Portugal profundo, mas também tenho conhecimento do mundo e da forma como Portugal é visto de fora. Apresento-me porque acho que é preciso fazer política de forma diferente, muito mais próxima das pessoas.
Como descobriu a política?
A política partidária descobri-a desde muito pequenina, com um vizinho dos meus avós com quem conversava muito e que me ensinou imenso. Chamavam–lhe o comunista de Alcouce [a aldeia do distrito de Coimbra de onde é natural], uma pessoa que foi muito importante para mim, um grande amigo. Em relação à política prática foi por envolvimento nos movimentos cívicos, no activismo.
Porquê o Bloco de Esquerda?
Porque era, nessa altura como hoje, o projecto político com que mais me identifico. Havia um espaço por preencher e o Bloco de Esquerda – às vezes soube fazê-lo melhor, às vezes pior – soube ocupar esse espaço. E perceber que os espaços são de toda a gente. É um partido em que nós não somos do partido, o partido é que é nosso. É um partido que é um instrumento, não é um fim em si mesmo.
Teve como antecessores nesta candidatura presidencial Fernando Rosas, Francisco Louçã e, depois, Manuel Alegre (que foi apoiado pelo BE e pelo PS). Espera bater os 5,3% de Francisco Louçã em 2006?
Isto não é um campeonato. O que eu espero é poder participar, e isso é muito desafiante, neste momento em que vivemos, neste momento de reconfiguração do sistema político em que a esperança começa a renascer aos bocadinhos, no meio de tanto medo.
Fala muito num novo ciclo, numa nova esperança. Mas se esta experiência não correr bem, não há o risco de a esquerda ficar de costas voltadas, novamente e durante muitos anos?
Tudo o que se começa na vida pode correr bem ou pode correr mal. Mas para saber se vai correr bem ou mal é preciso começar e é preciso correr riscos. Temos todos a obrigação e a responsabilidade de levar tão a sério quanto possível aquilo que assumimos e fazer tudo o que está ao nosso alcance para correr bem.
François Hollande desafiou os restantes países europeus a juntarem-se à França no combate ao Daesh. Portugal deve responder – e de que forma – a esse repto?
Eu não concordo com a intervenção militar. Não acho que esta aliança entre a França e a Rússia vá acrescentar seja o que for que não seja um agravamento da situação, provocar ainda mais deslocados, mais refugiados e um problema maior. Acho que há uma total incompreensão das razões e das causas do problema que vivemos actualmente e deste monstro chamado Daesh, que ganhou vida própria. E uma incompreensão total daquilo que foram os últimos 14 anos, porque esta é a receita que foi usada em 2001, não funcionou e não vai funcionar em 2015. Tenho acompanhado este dossiê de muito perto. Há aqui uma sequência de erros e responsabilidades que nunca é assumida. Não se compreende a natureza do Daesh, que não é nem estado nem islâmico, é um califado com uma lógica de ocupação permanente, de alargamento de território. Não tem nada a ver com os fundamentos básicos do islamismo – não é por acaso que vemos a comunidade muçulmana condenar os ataques e não é por acaso que vemos tantas pessoas a fugir destes países, é porque estão precisamente a fugir do terrorismo. Além disso, estamos a falar de um monstro que não está mal de finanças, que ocupou 12 poços de petróleo, que consegue ganhar entre um e três milhões de euros por dia com a venda desse petróleo, que está organizado para cobrar impostos… e que tem receitas que resultam do apoio de amigos, que são conhecidos, seja da Arábia Saudita seja do Qatar. O monstro mata–se secando-lhe o financiamento. E a União Europeia tem tido um comportamento absolutamente dúbio. Tenho apresentado muitas vezes no Parlamento Europeu uma coisa que é tão simples quanto uma moratória à venda de armas para os grupos terroristas e à compra de petróleo vindo dos territórios ocupados pelo autoproclamado Estado Islâmico. Esta emenda nunca passou. Eu não consigo perceber o radicalismo desta proposta, sinceramente não consigo perceber quais são as razões que fazem sobrepor os interesses do negócio do armamento e do petróleo.
Vamos voltar a vê-la como cabeça-de-lista do BE nas próximas europeias?
Primeiro vou disputar [as presidenciais] até ao fim. Mesmo que soe a muito impossível, há muitos possíveis que resultam de impossíveis, portanto disputarei até ao fim. Não sendo eleita, regresso ao trabalho noParlamento Europeu.
Mas gostaria de continuar, após as próximas eleições?
Não sei, não pensei muito no assunto. Seja como for, no exercício de cargos políticos e públicos tem de haver tempo suficiente para maturação, mas também tem de haver tempos de renovação. Ninguém deve eternizar-se nos cargos.