Pacheco Pereira. “Cunhal teve de combater propostas de Delgado como bombardear o Rossio”

Pacheco Pereira. “Cunhal teve de combater propostas de Delgado como bombardear o Rossio”


Neste livro do historiador vamos descobrir um Cunhal desconhecido da maior parte da opinião pública, um dirigente comunista que simpatizava com a Primavera de Praga, entendia os argumentos dos chineses contra Moscovo, e acreditava que a via para derrubar o fascismo em Portugal tinha de contemplar a luta armada.


José Pacheco Pereira lança a 9 de Dezembro o quarto volume da sua biografia de Álvaro Cunhal. O conjunto da obra é mais que uma biografia do homem que temperou o aço do PCP, uma excelente história da oposição ao regime fascista e mesmo do século xx português. Neste volume, que começa com a fuga de Peniche e acaba com a queda do ditador da cadeira, há duas questões fundamentais: Cunhal e o seu papel no movimento comunista internacional e a posição original do PCP quanto à luta armada, em contraposição com as teses soviéticas da coexistência pacífica.

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O quarto volume da biografia de Álvaro Cunhal de Pacheco Pereira vai sair nas próximas semanas. Para o escrever, o autor teve acesso à documentação do PCP, mas também a um conjunto de arquivos internacionais, o arquivo do PCUS em Moscovo, do PCF em Paris e documentação vasta que até inclui documentos da espionagem dos Estados Unidos da América. Este período da vida de Cunhal acaba cinematograficamente, no momento que Jorge Sampaio é largado em Paris depois de ter tido uma reunião num castelo com o secretário-geral do PCP, compra o “Le Monde” e vê que Salazar caiu da cadeira. Nestas 600 páginas podem conhecer-se as principais acções de Cunhal que forjaram o PCP que chegou à revolução.

Este estava para ser o seu último volume sobre Cunhal até 1974, com a subida dele ao Chaimite, mas pelos vistos vai escrever um quinto volume…

Não, sempre tive a ideia de acabar com a queda de Salazar da cadeira. É um volume com cerca de 600 páginas, acompanha quase dia a dia o que aconteceu. É um trabalho com muitas consultas de arquivos em toda a Europa, quer nos antigos países da chamada Cortina de Ferro, quer em países ocidentais. E que revela um Cunhal que em grande parte é apagado, quer pela aproximação afectiva, quer pela aproximação do próprio PCP, que transforma Cunhal numa espécie de mito. Até agora a gente sabia aquilo que ele escreveu, mas não sabia aquilo que ele decidiu, com quem e contra quem tomou determinadas decisões. Penso que este volume tem duas coisas novas: por um lado, o Cunhal decisor num contexto internacional muito complicado, face à invasão da Checoslováquia, perante o conflito sino-soviético, em relação aos atritos com o Partido Comunista Espanhol, face finalmente à dependência do Partido Comunista Francês. Essa, chamemos-lhe assim, rede fina de Cunhal está retratada. O segundo aspecto relevante é o Cunhal e a luta armada. Este livro contraria a ideia esquerdista de que Cunhal não queria que houvesse luta armada, mostra um Cunhal sistematicamente a defender a violência revolucionária, de uma forma tanto mais clara quanto mais privada é a reunião. E a organizar-se para essa violência, ao mesmo tempo defrontando-se com o problema de que as propostas nesse mesmo terreno feitas por outros eram do domínio da loucura, a começar pelas de Humberto Delgado. Ele tem de combater essas propostas lunáticas de invasão do Algarve a partir da Argélia, de bombardeamento do Rossio, de matar Salazar, que vinham das alas de Henrique Galvão, Humberto Delgado e de muita gente que se colava ao Delgado, apresentando-se como defensores da “violência revolucionária” contra um PCP alegadamente reformista. Repetindo aquela forma que o próprio Delgado usou. O esquerdismo enchia a boca com a luta armada, mas não tinha condições para o fazer e em muitos casos não fez. Quando vemos o pensamento expresso nas reuniões da FPLN [Frente Patriótica de Libertação Nacional, organização que agrupava os vários sectores da oposição ao regime ditatorial português e que tinha sede em Argel], percebemos que, desde que ele sai da cadeia, a necessidade de se preparar e organizar a violência revolucionária – com avanços e recuos – é uma preocupação central no trabalho de Álvaro Cunhal.

Mas aquilo que está nas páginas do “Rumo à Vitória”, principal texto teórico do PCP na época, é a ideia de uma revolução democrática e nacional e de um levantamento nacional armado…

Sim, é um levantamento nacional armado, mas é importante perceber como essa formulação se forma e desenvolve no pensamento de Cunhal. Ela é desenvolvida praticamente desde 1961. Cunhal quando foge da cadeia a primeira coisa que faz é pôr em ordem o seu próprio partido. A crítica ao chamado “desvio de direita” é a crítica à transição pacífica do fascismo para a democracia, algo muito complicado de fazer, porque na União Soviética quem está no poder é Krutchov o defensor da ideia de “coexistência pacífica” entre os países socialistas e os capitalistas. Na verdade Fogaça [José Fogaça, principal teórico do PCP enquanto Cunhal está detido em Peniche e o mais influente quadro para a determinação da linha política do partido no V Congresso] está muito mais perto da posição soviética que Cunhal. Isto obriga-o a um grande equilibrismo, mas como sempre, nos momentos decisivos, Cunhal resolve a favor de Portugal, e da sua ideia de que existem condições únicas em Portugal para uma via revolucionária contra o fascismo. E pagou isso caro: alguns dos seus artigos foram censurados nas revistas internacionais dos partidos comunistas, houve partidos que ostensivamente preferiam o partido espanhol ao português nos apoios, com a convicção que a ditadura portuguesa só cairia depois de cair o regime franquista…

Ideia expressa várias vezes por Santiago Carrilho e Dolores Ibarrúri…

E em vários textos publicados até por outros responsáveis checos, soviéticos, italianos, franceses. Estas conversações e litígios estão retratados em fontes primárias: correspondência, memorandos internos, documentos soviéticos, etc… Cunhal passa horas e horas a discutir se devia haver atentados contra os pides, contra a Salazar, qual devia ser a natureza das operações especiais, e que tipo de organização é necessário desenvolver para essas operações especiais. O PCP participa em acções muito pouco conhecidas, até porque nunca as reivindicou, como um assalto a um banco para obter fundos. Criou paióis de munições. Uma parte da sua posição sobre a deserção, na altura considerada irrealista por muitos, a ideia de só haver deserção com armas, como defendia o partido bolchevique russo no final da Primeira Guerra Mundial, é entendida por essa necessidade de ter gente com preparação militar, e portanto que deveria fazer o serviço militar: o argumento que Cunhal dá é que precisava de pessoas com treino militar, para que essas pessoas mais decididas pudessem participar em acções violentas. Eu acho que isto matiza e desmente grande parte da noção que os esquerdistas divulgaram de um PCP pacífico e reformista.

Mas não pode confirmar parte da ideia de um PCP que sempre que tem uma dissidência recupera parte das ideias daqueles que saem? Veja-se o caso da luta armada, mas também em relação a sectores pró-chineses…

A luta armada é intrínseca ao pensamento de Álvaro Cunhal. Chamei-lhe uma vez um idealista pragmático. A maior parte das vezes as pessoas fixam-se no pragmático, mas não percebem a dimensão idealista das pessoas daquela geração. Mesmo aqueles que a gente menos espera, como Ceausescu [líder romeno derrubado e fuzilado em 1989]. Se formos ver a sua biografia percebemos que foram formados em tempos difíceis, muitos deles correram risco de vida, tiveram existências perigosas, foram torturados, presos durante muito tempo, estiveram durante a guerra, como muitos dirigentes dos partidos comunistas europeus, como o Duclos, estiveram para ser executados no dia seguinte. E isso cria gente com uma certa têmpera. O pragmatismo é importante mas é muito mais a ideologia, mas nós não compreendemos pessoas como Cunhal se considerarmos que o pragmatismo é em última instância algo que os molda. Cunhal é muito crítico das experiências do socialismo real, mas é consciente da importância geoestratégica da União Soviética.

Daí as decisões tomadas sobre, por exemplo, a Primavera de Praga?

Ele tem uma enorme simpatia pelo processo chego, traduzida em textos que são conhecidos e foram publicados. O processo de decisão no PCP sobre isso foi muito complexo, a decisão foi ocultada, depois um documento tem a data diferente daquela em que a decisão foi de facto tomada, o que significa que não foi fácil dar garantia aos soviéticos para a tomada pública dessa decisão. Mas Cunhal tem muito isso: teve simpatia pelos jugoslavos no final dos anos 40, mas no momento em que esses processos põem em causa a União Soviética ele acaba sempre por decidir a favor da União Soviética. 

Uma espécie de mais vale não ter razão no partido do que ter razão fora dele…

É a consciência de que, sejam quais forem as asneiras que a União Soviética cometa, o campo do socialismo fica mais empobrecido se os soviéticos caírem ou perderem a autoridade.

Mas isso dá-se na questão sino-soviética?

Dá-se inteiramente, sendo ele mais próximo, com as suas posições sobre Portugal, dos chineses, e tendo ele dificuldades internacionais porque as suas ideias eram identificadas com as dos chineses, é no entanto um dos dirigentes dos partidos comunistas cuja crítica é mais fina em relação aos chineses. Em 1961, Cunhal escreve um artigo de resposta ao artigo chinês “Viva o leninismo!” que é de muito melhor qualidade, percebendo de uma forma muito mais profunda o que estava em jogo que os dos outros dirigentes de partidos comunistas. Mais tarde Cunhal passa a ser uma das pessoas mais bem informadas no movimento comunista internacional. Uma das coisas que valorizo é que havia a prática no PCUS (Partido Comunista da União Soviética) de prepararem uma série de memorandos secretos que eram entregues aos principais dirigentes comunistas. Esse processo era pautado por um grande cuidado e secretismo, os documentos eram entregues para ser lidos e devolvidos: recebiam-nos por exemplo às 17 horas e tinham de os entregar às 20 horas. E nós temos algum conhecimento do que tinham esses memorandos porque uma das fontes deste livro é o FBI, que por estranho que pareça tinha uma grande penetração no Partido Comunista dos Estados Unidos da América, tinha informadores no topo da hierarquia: um dos mais importantes tem ao mesmo tempo a medalha da CIA e a do Soviete Supremo, o que é bem significativo o seu papel. E o que é que ele faz? Passa ao FBI tudo. E isso inclui não só as conversas com o PCP, por exemplo Cunhal a discutir o Black Power com os americanos; podemos ler também o que ele diz de Holden Roberto, de uma forma diferente do que diz em público; vemo-lo a explicar as circunstâncias da fuga de Agostinho Neto. Temos também acesso ao modus operandi: a informação dada pelos russos a Cunhal, a Thorez, Luigi Longo, Berlinguer é muito detalhada, versa assuntos como as conversações com os chineses, o boicote de Pequim aos vietnamitas – evidentemente era o que lhes interessava, mas isso significa que um homem como Cunhal estava muito bem informado. No topo da cadeia alimentar da informação soviética.

Porque não prolonga a sua obra sobre Cunhal até depois do 25 de Abril?

É uma decisão que só vou tomar depois de acabar estas obras.

Mas mudou de opinião?

A minha ideia era fazer a parte clandestina, porque queria fazer a história do PCP durante a clandestinidade. Embora fosse sobre o Cunhal, isto é uma história sobre o Partido Comunista e até sobre toda a oposição, e em princípio terminará com o Cunhal a subir ao chaimite. Tenho sempre a sorte de ter no final de cada volume momentos visualmente traumáticos, e este, como sabe, vai da primeira noite em que ele dorme em liberdade, 3 de Janeiro de 1960, ao momento em que Jorge Sampaio, que vem de uma reunião com Cunhal realizada num castelo nos arredores de Paris, que ele não sabe qual é e vai saber pelo livro, vem num carro de cortinas fechadas e é deixado pelo PCF, que era quem tinha a logística de apoio ao PCP, numa das portas de Paris, compra o “Le Monde” e vê que Salazar tinha caído da cadeira. É o momento dramático. O que seria importante conhecer é se Cunhal não saberia já e não lhes disse na reunião.

E o próximo volume?

O próximo é sobre o marcelismo, porque o marcelismo tem uma justificação: o marcelismo é o momento em que a direcção do PCP e o Cunhal mais perdem, não por não terem analisado correctamente a natureza do marcelismo, mas por não terem compreendido, senão tarde de mais, as mudanças políticas e sociais geradas pelo marcelismo, o que os faz chegar ao 25 de Abril muito mais fracos do que nós imaginamos. 

Mas “O Rumo à Vitória” não prevê com acuidade o que se vai passar?

Há uma certa diferença entre o programa do partido redigido para o sexto congresso e “O Rumo à Vitória”, ambos redigidos por Cunhal. Mas pode dizer-se que a ideia da revolução democrática nacional, que o que eles têm de esboçado é um programa mínimo que na altura parecia irrealizável, pelas circunstâncias da ditadura, mas se ler esse programa grande parte do que está nos oito pontos foi realizado no 2 5 de Abril. Quando analisamos o processo histórico vemos que Cunhal teve mais razão e ficamos mais próximos do que ele desejava do que desejava, por exemplo, a oposição republicana. É muito mais certeiro que quase tudo o que se escreveu. A melhor descrição avant la lettre do 25 de Abril está nos textos de Cunhal.