Sentado frente ao seu computador, Miguel (nome fictício) acedeu ao site realityteenvideos.com. Sabia bem o que estava a fazer quando seleccionou e ampliou uma fotografia onde surgia uma criança completamente despida. Sabia também que a página de internet se dedicava à distribuição de pornografia de menores. Tanto assim é que os servidores acabaram por ser encerrados meses mais tarde pela polícia luxemburguesa no âmbito da Operação Carole.
Ainda assim, Miguel repetiu a dose no dia seguinte, quando estava no seu local de trabalho. Seleccionou e visualizou uma foto de duas crianças num acto sexual explícito. E, em ambas as vezes, foi apanhado no radar da Polícia Judiciária. O dia, a hora, os minutos e os segundos, tudo registado e encaminhado para o Ministério Público, que o acusou de dois crimes de pornografia de menores.
Só que, afinal, ver pornografia infantil não é crime, decidiu o Tribunal das Caldas da Rainha. E agora foram os juízes da Relação de Coimbra que este mês assinaram por baixo dessa sentença. Miguel não guardou as fotos no seu computador e essa cautela livrou-o de uma pena que poderia ir até aos cinco anos de prisão. A legislação pune quem tenha como objectivo “deter” ou “adquirir” as fotografias. E não foi esse o caso, já que a “mera visualização” não se pode confundir de modo algum com a “detenção ou aquisição” dessas fotos, concluiu o tribunal.
O Ministério Público ainda insistiu e recorreu da sentença da primeira instância. Tentou convencer os juízes da Relação de que, ao fazer download de pelo menos uma imagem do site, Miguel esteve na posse, ainda que “transitoriamente”, desse material pornográfico. Entender o contrário seria desvirtuar a reforma penal de 2007 e até afastar-se dos objectivos do direito internacional. E nem sequer teria em conta “as especificidades do mundo cibernético”, onde ocorre a “larga maioria” das situações de pornografia infantil, lê-se no acórdão da Relação.
E isto sem contar com o facto de esse comportamento poder incentivar a procura de pornografia infantil na internet por outros tantos que, impelidos pelo mesmo impulso que Miguel, passam a não ter qualquer impedimento legal para aceder a sites que, além de serem gratuitos, proliferam na internet.
Decidir no sentido oposto, defende a acusação, só tem efeitos perversos, uma vez que promove a actividade de quem controla esses sites, devido à publicidade resultante do número de visitantes. Para fortalecer ainda mais os seus argumentos, o MP joga a cartada final. Acima de tudo, é preciso não esquecer o interesse das crianças envolvidas, para as quais o que menos importa é se as imagens foram vistas ou guardadas no computador, pois o essencial, a sua dignidade, ficou comprometido.
E indo ao fundo desta questão, que diferença faz ver e não guardar ou ver e guardar as fotos? E qual a razão para tratar de modo diferente quem vê as vezes que quiser e durante o tempo que quiser fotos e vídeos, e quem guarda num ficheiro ou numa pasta de um computador esse material para poder mais tarde tirar proveito delas? Os dois casos são iguais e, portanto, devem ser igualmente punidos pela lei, defende o MP.
Todos esses argumentos até podem ser válidos na esfera da ética e da moral, ninguém diz o contrário. Só que de nada valem perante a justiça. E foi desta forma que a Relação de Coimbra acabou com qualquer dúvida ou dilema. Nada a fazer nestes casos. Nada, mesmo nada na legislação corrobora a tese do Ministério Público: “Apenas serão merecedores de uma reacção penal as condutas que, de pleno, se integrem na previsão legal.” Tudo o resto fica excluído. Ainda que sejam práticas “derivadas” ou “aparentadas” com este tipo de crime. E ainda que sejam já um resultado de um “refinamento” das práticas criminosas, consequência de actualizações técnicas.
Sobrava uma réstia de esperança ao Ministério Público, que continuava a acreditar na condenação de Miguel ao defender que, por ter feito download de uma das fotos, ficou na posse de material pornográfico, nem que fosse por pouco tempo – esperança essa que se esfumou com a decisão da Relação. O conceito de “detenção provisória” não tem fundamento legal nem sequer pela jurisprudência, avisam os juízes, ressalvando contudo que a revisão da legislação, em 2007, ainda é demasiado recente para criar qualquer tipo de doutrina nos tribunais.
Além disso, ao aceder ao site e ao ver as fotos de pornografia infantil, Miguel não fez mais do que qualquer um poderia fazer. Uns com intenção de satisfazer um impulso sexual; outros, quem sabe, por acidente ou inadvertidamente. Os verdadeiros detentores desses materiais são os gestores desses sites, rematam os juízes.