Esta semana assistimos ao derrube de um Sukhoi 24 russo por um míssil ar ar, disparado por um F16 turco sobre território deste país, tendo os pilotos conseguido ejectar-se, ainda que um deles tenha sido morto por forças turquemenas antes de chegar ao solo.
Não é fácil sintetizar o que se passa na região: a Turquia procura, há muito, derrubar Bashar Al-Assad sem que tal signifique admitir que os curdos, que combatem Bashar, sonhem com um Curdistão independente a partir dos territórios turco, sírio e iraquiano; Bashar conta com o apoio de Teerão numa aliança de conveniência em que o xiismo não é sequer o ponto mais forte; o Daesh, criação das petromonarquias do Golfo para combater a predominância saudita e o Irão, continua a controlar grande parte da Síria e do Iraque, exporta petróleo e terroristas; os EUA lideram uma coligação que, a convite do Iraque, bombardeia a partir dos céus o Daesh sem resultados significativos; a Rússia decidiu redobrar o apoio a Bashar, o cliente político que lhe sobra no Médio Oriente, e, a seu pedido, deslocou para a Síria uma miniforça aérea expedicionária que bombardeia os inimigos de Bashar; depois dos atentados de Paris, Hollande declarou guerra ao Daesh e percorre o mundo com o propósito de formar uma coligação para o combater, sonhando com uma presença de forças armadas ocidentais na Síria, e regressou de Washington desenganado por Obama, que lhe repetiu “no boots on the ground”…
Voltemos às traições da memória: em 2012 os sírios abateram um F 4E turco que sobrevoou território sírio, matando os dois pilotos. O então presidente turco considerou a reacção síria desproporcionada e ilegal dada a duração reduzida do sobrevoo e a frequência com que tais incidentes ocorrem nas fronteiras entre os diversos estados.
Aqueles que não cultivam o direito internacional público permitam-me um lembrete: com o sistema plasmado na Carta das Nações Unidas, a regra base do relacionamento entre os estados é a proibição do uso da força na solução de conflitos internacionais, sendo reservada ao Conselho de Segurança a avaliação e a reacção às ameaças à paz. Esta regra base conhece um contraponto no direito de legítima defesa individual ou colectiva contra ataques armados praticados por estados ou entidades não estaduais. Este contraponto tende a ser objecto de interpretações extensivas por parte dos estados.
No passado dia 20, o Conselho de Segurança aprovou por unanimidade a Resolução 2249, qualificando os actos passados praticados pelo Daesh (atentados na Tunísia, em Ancara, A321 russo sobre o Sinai, Beirute e Paris) e os actos que venham a ser praticados como actos terroristas que constituem uma ameaça à paz e à segurança.
Esta resolução, que na prática reconhece como verificados, de forma permanente e para o futuro, os requisitos para o exercício do direito de legítima defesa individual ou colectiva contra os ataques terroristas do Daesh, não foi no entanto aprovada ao abrigo do capítulo VII da Carta. A unanimidade ficou cara e mesmo com a recente morte de um refém chinês às mãos do Daesh, pelo menos a Rússia ainda tem muito fresca na memória a interpretação extensiva da Resolução 1970 permitindo o uso da força contra Kadafi. O Conselho de Segurança limitou-se a reconhecer que a legítima defesa pode ser exercida contra o Daesh. Não é pouco, mas está longe de ser suficiente.
Escreve à sexta-feira