O fim e o princípio


Ironia suprema, ou justiça divina, Cavaco no seu último acto político teve de dar posse, por obrigação constitucional e exercício democrático, a um executivo de configuração partidária e ideológica contra a qual toda a vida lutou


Cinquenta e um dias depois de Cavaco Silva nos ter feito saber, todo pimpão, que já tinha meditado sobre todos os possíveis cenários políticos resultantes da nova aritmética parlamentar saída das eleições legislativas de Outubro, por fim avançou com a única solução institucional possível: indigitar António Costa primeiro-ministro para formar governo.

A terra não se abriu sob os nossos pés, os temíveis mercados não entraram em pânico, os parceiros europeus de quem se vaticinava a mais violenta reacção mantêm a serenidade e a bonomia, a NATO não estacionou no Tejo, e nem o papão comunista serve para as encomendas, a não ser para deixar alguns velhos patuscos emocionalmente ainda mais destrambelhados e uns jovens imbecis a sonharem excitados com uma oposição de gente fina, que como sabemos é outra coisa.

Porém, o que conduziu esta procura interior de Cavaco durante este tempo de agonia? Não foi seguramente a necessidade de encontrar a solução mais adequada para algo que constitucionalmente não permitia outras leituras.
Cavaco Silva é herdeiro de uma direita civil e militar golpista spinolista derrotada pelo MFA e pela esquerda no Verão de 1974, que desejava uma descolonização sem descolonizar, um regime com aberturas mas sem o fim da PIDE e a manutenção dos presos políticos para melhor avaliação.
De uma direita terrorista que organizou uma rede bombista responsável, em pleno Verão quente de 1975, por dezenas de atentados a sedes dos partidos de esquerda. Herdeiro da direita que no rescaldo do 25 de Novembro de 1975 manifestou estar insatisfeita com os resultados, exigiu a ilegalização dos partidos de esquerda, nomeadamente do PCP, e a prisão dos seus militantes.

Desses acontecimentos resultou o famigerado “arco da governação”, PS, PSD e CDS, que desde então assaltou o Estado e os bens públicos, afundando a economia, degradando a democracia e excluindo qualquer alternativa.
Cavaco, que em várias intervenções públicas deixou muito claro o que pensava e como se posicionava em relação a estes momentos da nossa história política recente, sempre se assumiu como representante dessa direita antidemocrática, e não como o Presidente de todos os portugueses.

Ironia suprema, ou justiça divina, Cavaco, no seu último acto político, teve de dar posse, por obrigação constitucional e exercício democrático, a um executivo sustentado por uma configuração partidária e ideológica contra a qual toda a vida lutou e pensava definitivamente arredada do poder.

O Presidente Cavaco Silva não podia estar em simultâneo contra um parlamento que encontra alternativas, que não aceita soluções de gestão, e que não podia dissolver. 

Esta situação política é muito provavelmente irrepetível – de facto nenhum acto político é simétrico de qualquer outro. A não existência de maiorias absolutas, a pressão dos eleitores manifestada em plena campanha, um parlamento que não pode ser dissolvido, o PCP e o BE a subirem em votos e mandatos representando mais de 20% dos eleitores, um PS aquém das expectativas eleitorais e incapaz de capitalizar a seu favor nem o chamado voto útil à esquerda, nem o voto de castigo das forças de direita, levaram à criação de uma realidade política em que, se a conjugação de um destes elementos não se tivesse imposto, por exemplo uma maior expressão eleitoral do PS ou um residual crescimento do PCP e do BE, o acordo à esquerda já não existiria.   

O que Cavaco Silva não queria entender é que o melhor e mais firme factor de estabilidade política, social, e por extensão sinal positivo para os mercados, o mais seguro elemento de estabilidade para os nossos parceiros internacionais, é sempre o respeito pela vontade expressa pelos cidadãos em eleições livres.

O mais irónico é que possivelmente, e avaliando o perfil ideológico das personalidades que irão formar ministerialmente este executivo, podemos concluir que será um governo ao centro apoiado por partidos de esquerda.
Em termos de calendário político, cabe a Cavaco Silva dar posse a este elenco governamental, provavelmente hoje, dia 26, dez dias a partir do qual o novo executivo terá de apresentar o programa de governo no parlamento. A partir daí a lei dá três meses ao governo para apresentar o Orçamento na Assembleia da República.

Por muitas e diversas razões, algumas que só serão reveladas com a prática e a estabilidade desta conjugação de esquerda no parlamento, este governo já terá lugar na história da nossa democracia.
A conjugação de muitas circunstâncias criou esta realidade política, que por sua vez demoliu mitos e terminou com um ciclo. 

Trata-se ao mesmo tempo de uma mudança geracional. Há um conjunto de políticos que com Cavaco partilham práticas e ressentimentos que terminam também aqui.

A “Posição conjunta sobre a situação política”, nome dado ao acordo assinado pelo PS, pelo PCP, pelo BE e pelos Verdes, pode iniciar uma nova era na política nacional que conta desde já com a expectativa de milhões de portugueses, que não esperam um milagre de consumo, como a direita ferida e arrogante quer fazer crer, mas que somente exigem os sinais e as medidas que lhes devolvam a esperança de uma vida melhor.

Consultor de comunicação
Escreve às quintas-feiras

O fim e o princípio


Ironia suprema, ou justiça divina, Cavaco no seu último acto político teve de dar posse, por obrigação constitucional e exercício democrático, a um executivo de configuração partidária e ideológica contra a qual toda a vida lutou


Cinquenta e um dias depois de Cavaco Silva nos ter feito saber, todo pimpão, que já tinha meditado sobre todos os possíveis cenários políticos resultantes da nova aritmética parlamentar saída das eleições legislativas de Outubro, por fim avançou com a única solução institucional possível: indigitar António Costa primeiro-ministro para formar governo.

A terra não se abriu sob os nossos pés, os temíveis mercados não entraram em pânico, os parceiros europeus de quem se vaticinava a mais violenta reacção mantêm a serenidade e a bonomia, a NATO não estacionou no Tejo, e nem o papão comunista serve para as encomendas, a não ser para deixar alguns velhos patuscos emocionalmente ainda mais destrambelhados e uns jovens imbecis a sonharem excitados com uma oposição de gente fina, que como sabemos é outra coisa.

Porém, o que conduziu esta procura interior de Cavaco durante este tempo de agonia? Não foi seguramente a necessidade de encontrar a solução mais adequada para algo que constitucionalmente não permitia outras leituras.
Cavaco Silva é herdeiro de uma direita civil e militar golpista spinolista derrotada pelo MFA e pela esquerda no Verão de 1974, que desejava uma descolonização sem descolonizar, um regime com aberturas mas sem o fim da PIDE e a manutenção dos presos políticos para melhor avaliação.
De uma direita terrorista que organizou uma rede bombista responsável, em pleno Verão quente de 1975, por dezenas de atentados a sedes dos partidos de esquerda. Herdeiro da direita que no rescaldo do 25 de Novembro de 1975 manifestou estar insatisfeita com os resultados, exigiu a ilegalização dos partidos de esquerda, nomeadamente do PCP, e a prisão dos seus militantes.

Desses acontecimentos resultou o famigerado “arco da governação”, PS, PSD e CDS, que desde então assaltou o Estado e os bens públicos, afundando a economia, degradando a democracia e excluindo qualquer alternativa.
Cavaco, que em várias intervenções públicas deixou muito claro o que pensava e como se posicionava em relação a estes momentos da nossa história política recente, sempre se assumiu como representante dessa direita antidemocrática, e não como o Presidente de todos os portugueses.

Ironia suprema, ou justiça divina, Cavaco, no seu último acto político, teve de dar posse, por obrigação constitucional e exercício democrático, a um executivo sustentado por uma configuração partidária e ideológica contra a qual toda a vida lutou e pensava definitivamente arredada do poder.

O Presidente Cavaco Silva não podia estar em simultâneo contra um parlamento que encontra alternativas, que não aceita soluções de gestão, e que não podia dissolver. 

Esta situação política é muito provavelmente irrepetível – de facto nenhum acto político é simétrico de qualquer outro. A não existência de maiorias absolutas, a pressão dos eleitores manifestada em plena campanha, um parlamento que não pode ser dissolvido, o PCP e o BE a subirem em votos e mandatos representando mais de 20% dos eleitores, um PS aquém das expectativas eleitorais e incapaz de capitalizar a seu favor nem o chamado voto útil à esquerda, nem o voto de castigo das forças de direita, levaram à criação de uma realidade política em que, se a conjugação de um destes elementos não se tivesse imposto, por exemplo uma maior expressão eleitoral do PS ou um residual crescimento do PCP e do BE, o acordo à esquerda já não existiria.   

O que Cavaco Silva não queria entender é que o melhor e mais firme factor de estabilidade política, social, e por extensão sinal positivo para os mercados, o mais seguro elemento de estabilidade para os nossos parceiros internacionais, é sempre o respeito pela vontade expressa pelos cidadãos em eleições livres.

O mais irónico é que possivelmente, e avaliando o perfil ideológico das personalidades que irão formar ministerialmente este executivo, podemos concluir que será um governo ao centro apoiado por partidos de esquerda.
Em termos de calendário político, cabe a Cavaco Silva dar posse a este elenco governamental, provavelmente hoje, dia 26, dez dias a partir do qual o novo executivo terá de apresentar o programa de governo no parlamento. A partir daí a lei dá três meses ao governo para apresentar o Orçamento na Assembleia da República.

Por muitas e diversas razões, algumas que só serão reveladas com a prática e a estabilidade desta conjugação de esquerda no parlamento, este governo já terá lugar na história da nossa democracia.
A conjugação de muitas circunstâncias criou esta realidade política, que por sua vez demoliu mitos e terminou com um ciclo. 

Trata-se ao mesmo tempo de uma mudança geracional. Há um conjunto de políticos que com Cavaco partilham práticas e ressentimentos que terminam também aqui.

A “Posição conjunta sobre a situação política”, nome dado ao acordo assinado pelo PS, pelo PCP, pelo BE e pelos Verdes, pode iniciar uma nova era na política nacional que conta desde já com a expectativa de milhões de portugueses, que não esperam um milagre de consumo, como a direita ferida e arrogante quer fazer crer, mas que somente exigem os sinais e as medidas que lhes devolvam a esperança de uma vida melhor.

Consultor de comunicação
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