Virada a página do governo de direita, virada a página da austeridade, ainda que algumas medidas sejam hoje prolongadas por 2016 adentro pelo parlamento, abre-se um novo capítulo em que a euforia do momento é confrontada com a realidade da governação, do país e do mundo, com o imprevisto, com a negociação do voto favorável das esquerdas e com a oposição das direitas. Com o governo de minoria absoluta dizem estar criadas as condições para a mudança, num primeiro momento por via das reversões, espera-se que depois pela construção de transformações sociais e económicas, dentro da banda larga das regras da disciplina orçamental que resultam do Pacto de Estabilidade e Crescimento, do Tratado Orçamental, do mecanismo europeu de estabilidade e da participação de Portugal na união económica e monetária e na união bancária.
Ainda antes deste novo tempo marcado pela ruptura com as regras e as práticas de décadas de funcionamento do sistema político, importa sublinhar a evidente lástima do embuste da devolução da sobretaxa (em meses de 35,5% a 0%), a inacreditável incompetência do governo de Passos e de Portas na concretização do banco de fomento, que só injectará dinheiro nas empresas e na economia em 2016 (em 5 de Outubro de 2012, quando o PS defendeu a ideia, era já a seguir) e a displicente incapacidade para disponibilizar os fundos comunitários do novo quadro, do Portugal 2020. O veredicto dos portugueses a 4 de Outubro foi a mudança política e a verdade é que a direita foi incompetente a sublinhar a convicção no cumprimento desse mandato. Perpassou a reserva mental, existiu uma forte desconfiança e a ocasião dos números gerou a oportunidade da conversão da derrota em vitória, antes da anunciada reversão da austeridade. O problema é a que o fim da austeridade, como a prosperidade, não se decreta. Foi assim com o “milagre económico” do então ministro Pires de Lima, é assim com todas as proclamações de mudanças repentinas dos apoiantes da nova solução governativa. Só servem para aditivar as expectativas dos cidadãos quando é evidente que o tempo que medeia entre a tomada de posse do governo e a concretização de muitas das reversões anunciadas será de meses, com factores que ninguém controla e com eleições presidenciais pelo meio. A inevitável espera até que algo chegue ao bolso ou à vida do cidadão só pode gerar nervosismo e descontentamento.
Dizem que estão criadas as condições, para 2016 e para a legislatura. Os escritos são mais vagos, mas há já conclusões a tirar.
Fica claro, apesar dos ses, que para o Bloco de Esquerda, para o Partido Comunista Português e para o Partido Ecologista Os Verdes, ao invés do que sempre foi dito, um governo do PS não é farinha do mesmo saco que um governo da direita.
Ficou claro que, depois de apeados do poder, o PSD e o CDS não estarão disponíveis para acorrer ao governo do PS quando surgirem questões não contempladas pelos textos das posições políticas conjuntas ou imprevistos conexos, num momento em que a conjuntura internacional está demasiado volátil.
E também são muito claros os riscos da jogada de acesso ao poder nas actuais circunstâncias. A fragilidade das convergências; a sua não extensão a eleições regionais ou autárquicas – o PS continua a ser o maior partido autárquico; e as cartas marcadas pela direita nas nomeações, no mapeamento dos destinos dos fundos comunitários e na concretização dos negócios de fim de festa. Vivemos um tempo atípico, em que a margem é estreita, a expectativa é grande e o estado de graça inexistente. Talvez por isso, só pode ser o tempo das pessoas e da cidadania. Dizem estar criadas as condições. Que seja para acabar com a cultura de preconceito e de perseguição aos cidadãos que foi induzida pelos responsáveis políticos aos serviços no desespero do aumento da receita. Faz parte da cultura instalada, mas o cidadão contribuinte, aquele a que corresponde um número da Segurança Social ou o que é utente do Serviço Nacional de Saúde não é um criminoso nem pode ser tratado com preconceito, indiferença ou soberba. O Estado é uma emanação do cidadão e quando a democracia representativa tem tantas fragilidades, a relação só pode ser de respeito pelos seus direitos e deveres. O Estado é incompetente com as classificações das e-facturas e não tem de ser o cidadão a suprir essas falhas, a funcionar como agente tributário ou a ser especialista em direito fiscal. Haja dó. E já que há condições, diga-se: basta! Quanto ao resto, mais que crença é uma questão de sorte. Muita sorte, cautelas e caldos de galinha.
Escreve à quinta-feira