O Meu Vizinho é Judeu. O preconceito começa na caixa de correio

O Meu Vizinho é Judeu. O preconceito começa na caixa de correio


A nova peça que une Bruno Nogueira e Miguel Guilherme estreia-se hoje no Casino Estoril. É uma comédia, pois claro, embora fale de temas sérios.


Se uma equação dita que x mais y é igual a n, não há nada que possamos fazer. Se tomarmos as variáveis como Bruno Nogueira e Miguel Guilherme, o n será sempre o riso. É invariável, impossível obter outro resultado, sobretudo quando ambos partilham o mesmo palco. Assim o fizeram com “Como Diz o Outro”, correndo o país como se de uma digressão de uma banda rock se tratasse. 

A questão que desta vez se coloca é que ainda que a banda mude de reportório, ainda que o novo disco seja algo mais sério que o seu antecessor, o público não deixa de rockar. “O Meu Vizinho é Judeu” é um texto de Jean-Claude Grumberg que toma o preconceito como ponto de partida para uma comédia que assume contornos de tragédia. Beatriz Batarda é quem encena a peça que toma os judeus como visados e parte da história deste povo para algo mais geral. Para ver, a partir de hoje, no Casino Estoril. 

Em Paris, há um prédio que une um judeu a caminho da terceira idade (Miguel Guilherme) e um jovem ignorante, refém dos anseios e do medo da sua mulher (Bruno Nogueira). Enquanto se verifica as caixas de correio, há sempre tempo para um “boa tarde, vizinho, como está?” ou até “os miúdos, como vão?”. Aqui, a conversa quase sempre perra dá lugar a uma curiosidade que não assume qualquer espécie de vergonha. E o jovem ignorante faz uma aproximação mais profunda do que é costume registar-se nestes episódios de vizinhança. “O senhor é judeu? O que é isso de judeu?”, indaga, para chegar a casa e ter uma resposta para dar à mulher.

Pouco tempo após o espectáculo começar, entende-se que a mulher é apenas um veículo que ajuda o espectador a identificar alguém como responsável, apesar de a mulher, como conta Bruno Nogueira, poder ser facilmente substituível: “Podia ser a mulher ou o que tu ouves dizer, ou a internet, é tudo um meio para chegar ao fim. O que o torna ainda mais ignorante. Uma coisa era ele ser só ignorante com o desconhecido, de não saber o que é isso dos judeus e atacar por ser ignorante. Outra coisa é ele nem sequer ter opinião, tem a opinião que a mulher quer que ele tenha. Isto é profundamente actual. De repente, por um acto isolado de uns loucos, todo um povo é açambarcado como se todos fossem terroristas.”

A problemática é daquelas que provocam um silêncio estranho nos dias que correm, que a memória ainda está fresca e o medo bem presente. “Desta vez, estamos a fazer uma comédia um pouco mais elaborada. Trata daquele tipo de temas que são sempre quentes. Sobretudo temas políticos e religiosos… tornam-se temas perigosos. Mas, na verdade, o que não é perigoso hoje em dia? Até atravessar a rua é perigoso”, atira. As analogias sucedem-se em palco e, como já havia sido dito, o povo judeu veste a roupa daquilo que tem sido a sua história ao longo dos anos: a discriminação. “Sendo o autor judeu, e tendo perdido o pai em Auschwitz, tem uma legitimidade para escrever sobre isto que outros não terão. Ele consegue dar os dois lados da moeda e explicar que, acima de tudo, ser judeu é uma memória, é uma cultura, e não necessariamente uma religião. Podes ser judeu e ser ateu. O tema da peça, para mim, não são os judeus, é o preconceito. Tu conheces sempre alguém que tem aquele tipo de comentário triste, aquele tio estranho”, afirma Bruno Nogueira. 

Inquilinos Se este texto lhe está a incutir uma carga pesada, não se deixe enganar. São os próprios actores que acreditam que esta pode ser uma comédia daquelas que se levam para casa, daquelas que sugerem reflexões que nada combinam com gargalhadas, mas isso fica para depois, caro espectador. Durante o espectáculo, é rir a bom rir. A componente caricata da relação entre vizinhos foi algo que quisemos abordar perante os actores e, para Miguel Guilherme, é tudo uma questão de boa educação. “Há vizinhos que se matam por causa de disputas com animais ou assim, há quem mude de casa. Eu não ligo nada a isso, mas há tipos que te fazem a vida negra. Entre não dizer nada, que é algo bastante triste, e andar à porrada, tento estar no meio, numa relação cordial. É a cordialidade, civilidade, simpatia, ser prestável. A boa educação é muito importante.” 

Bruno Nogueira fala da sua experiência quando ainda vivia com os pais e um vizinho atirou o seu próprio cão de um vão de escada, mas antes que o deixemos continuar, não vá o vizinho raivoso ler isto e decidir vingar-se, encurralamos Bruno Nogueira num jogo que ele tão bem conhece. Será que ele preferia só fazer teatro com o Miguel Guilherme, durante a vida inteira, ou ser seu vizinho por cinco anos? “Só podia fazer teatro com o Miguel? Eh pá, tinha de ser vizinho dele durante cinco anos. Na boa, com o Miguel não me custava nada e nem era por não querer trabalhar com ele cinco anos, mas queria era trabalhar com outras pessoas, experimentar outras coisas”, responde. É justo.