Motores sem identificação e registos adequados, extintores sem a devida manutenção, falta de reparações obrigatórias. Uma auditoria técnica realizada este ano pela Everjets, a empresa que ganhou o concurso dos Kamov, detectou mais de 200 desconformidades nos helicópteros russos – cuja manutenção esteve durante oito anos a cargo da Heliportugal –, algumas das quais impeditivas de voo.
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Na sequência da vistoria, o Ministério da Administração Interna (MAI) ordenou a abertura de um inquérito – conduzido, com carácter de urgência, pela Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) – para apurar responsabilidades sobre o estado dos Kamov. A frota teve, aliás, de ficar em terra boa parte da época de incêndios, até que as desconformidades, que custaram mais de quatro milhões de euros ao Estado, fossem solucionadas.
Segundo a Autoridade Nacional de Protecção Civil (ANPC), os Kamov já se encontram “nas suas bases normais” em Santa Comba Dão e em Loulé. Os problemas estarão resolvidos, embora por enquanto os helicópteros estejam impedidos de participar em missões de busca e salvamento – na sequência de um acidente com um guincho que ocorreu a 30 de Dezembro de 2014 em São Brás de Alportel. Ao que o i apurou, os guinchos usados neste tipo de missões não seriam os apropriados, podendo causar danos nos motores das aeronaves. O problema já se tinha, de resto, manifestado em 2008, numa operação de salvamento no mar, ao largo de Vilamoura, em que o guincho não funcionou e o motor do Kamov entrou em sobreaquecimento.
A ANPC não explicou, no entanto, se o Kamov que se despenhou em 2012 de forma súbita num parque de merendas na zona de Ourém – e que nunca mais voltou a voar – já estará também operacional. O helicóptero sofreu “danos substanciais” e, na altura, como revelou uma auditoria do Tribunal de Contas à Empresa de Meios Aéreos (EMA), a frota não estava coberta por qualquer seguro. A EMA justificou-se aos juízes com dificuldades orçamentais, dizendo que, em virtude dos cortes da tutela, se pagasse os seguros ficaria sem dinheiro para o combustível dos helicópteros.
Inquérito sem conclusões O i questionou a IGAI sobre o ponto de situação do inquérito ordenado em Julho pela então ministra da Administração Interna sobre o estado dos Kamov, mas quase meio ano depois parece ainda não haver conclusões. “As diligências instrutórias já realizadas geraram a necessidade de realizar outras diligências que se têm revelado particularmente morosas e complexas, designadamente em face do grande volume de documentos a obter e a examinar, bem como do elevado número de pessoas a inquirir”, respondeu por email o gabinete do subinspector geral da Administração Interna, Paulo A. Ferreira, que rematou a resposta sublinhando a “natureza secreta do processo”.
Mas a auditoria, a cujas conclusões o i teve acesso, apontou para a existência de anomalias relacionadas com peças. Foram, por exemplo, encontrados componentes que não pertenciam aos helicópteros e outros que não foram mudados no âmbito das revisões programadas aos Kamov. Só um dos helicópteros apresentava quase 90 inconformidades, tendo sido encontrados motores cujo registo não correspondia ao indicado nos documentos originais das aeronaves. Também foram detectados extintores sem manutenção e peças por reparar (ver fotos que ilustram a página, retiradas das conclusões da auditoria técnica) ou cuja reparação foi feita ignorando as recomendações do fabricante.
Algumas destas falhas, revelou recentemente o “Público”, foram usadas em tribunal pela empresa United Jet Services, que interpôs uma providência cautelar para impugnar o concurso ganho pela Everjets. Na acção, a empresa garantia que os números de série dos motores dos Kamov que constavam do registo dos aparelhos não coincidiam com os que estavam no caderno de encargos e invocava a existência de licenças caducadas, garantindo também que a Heliportugal – que atravessava um processo especial de revitalização (PER) – teria dado alguns dos motores como “garantia hipotecária em processos executivos da Segurança Social”.
Mais uma época a alugar Em consequência da vistoria, este ano, e na véspera do arranque da fase Charlie, a mais crítica do combate aos fogos, dos dez helicópteros do MAI, só um pesado Kamov e dois ligeiros Ecureuil estavam a voar. Mas o presidente da Heliportugal, Pedro Silveira, descarta responsabilidades no estado dos helicópteros. “Nós, que só fazemos a manutenção, somos como um stand, uma garagem de automóveis que faz a manutenção de um carro. Dizem-nos que temos de fazer a revisão dos 100 mil quilómetros e nós fazemos, mas o carro não é meu, e se o dono o deu a um taxista para conduzir, o problema não é meu”, tentou explicar no programa “Sexta às 9” da RTP, quando confrontado com as desconformidades detectadas nos aparelhos. Pedro Silveira acrescentou ainda que quando os Kamov saíram “da mão” da Heliportugal estavam “impecáveis”, sublinhando que a ANPC e a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC) sempre os deram como aptos para voar.
Já a Everjets disse ao “Público”, em Julho deste ano, que estava a tentar “resolver os problemas, alguns deles gravíssimos e completamente documentados, que colocavam em causa a segurança de pessoas e bens, e que foram originados pela deficiente e irresponsável operação do anterior titular do contrato”. Para reparar as aeronaves, o governo gastou quatro milhões de euros, pagos através de um ajuste directo à empresa. O procedimento foi justificado pela ANPC por “motivos de natureza imperiosa resultantes de acontecimentos imprevisíveis”.
O dispositivo deste ano de combate aos incêndios previa a existência de 49 meios aéreos e contava com os Kamov, tendo sido por isso necessário alugar aeronaves complementares.