Miguel Macedo está em xeque com as suspeitas de corrupção na atribuição dos vistos gold. E, durante a investigação, a Polícia Judiciária (MP) e o Ministério Público (MP) terão também encontrado indícios de que o antigo ministro da Administração Interna tentou influenciar o concurso de adjudicação da operação e manutenção dos helicópteros pesados Kamov de combate aos incêndios, passando informação privilegiada a um amigo e ex-sócio.
Na acusação dos vistos gold, deduzida esta semana, o MP conta como Miguel Macedo – acusado de quatro crimes, entre eles um de tráfico de influências relacionado com os helicópteros – terá enviado por email o caderno de encargos do concurso ao amigo de adolescência Jaime Gomes, também arguido no processo. A informação terá seguido através do correio electrónico do ministério três meses antes de o procedimento concursal ser lançado e num momento em que ainda decorreriam trabalhos preparatórios. O objectivo, acredita o Ministério Público, seria o de favorecer um grupo de aviação espanhol que acabou por não concorrer, mas foi subcontratado pela empresa vencedora.
Segundo a acusação, o antigo ministro revelou, com esta conduta, “o muito grave e acentuado desrespeito pelos deveres funcionais e pelos padrões ético-profissionais”, demonstrando “total falta de competência e honorabilidade profissionais”.
O concurso em causa, lançado no ano passado, foi a segunda tentativa do governo para adjudicar a operação e a manutenção dos helicópteros russos que o Estado comprou em 2006. Quando Miguel Macedo assumiu a pasta da Administração Interna, os concursos eram anuais, mas o ex-ministro decidiu alterar as regras e preparou um megaprocedimento concursal a cinco anos, numa parceria com o INEM e em que os meios aéreos do Ministério da Administração Interna (MAI) – seis Kamov e quatro helicópteros ligeiros Ecureuil – foram divididos em lotes. O concurso público internacional foi lançado em 2012, mas a parte que dizia respeito aos Kamov ficou deserta por falta de interessados.
Nova tentativa Por isso, e já em Agosto de 2013, o Conselho de Ministros teve de autorizar um novo concurso, aumentando o valor para 51,2 milhões de euros, de maneira a garantir que a adjudicação não voltava a falhar. Até porque Miguel Macedo queria encerrar a Empresa de Meios Aéreos (EMA), sociedade anónima com capitais exclusivamente públicos, que servia para gerir as dez aeronaves. E o fecho só poderia ser concretizado após concluir a entrega da operação e manutenção dos helicópteros. A 18 de Junho de 2014, o antigo ministro deu por terminados os trabalhos preparatórios e determinou a abertura do novo concurso público internacional, publicado em Diário da República no dia 30 do mesmo mês. E a Everjets ganhou ao apresentar a proposta mais baixa, no valor de 46 milhões de euros.
Os documentos do concurso, incluindo o caderno de encargos, só ficaram disponíveis para a consulta de eventuais interessados no final de Junho do ano passado. Mas, de acordo com o Ministério Público, a 6 de Março, Miguel Macedo terá encaminhado a documentação para o amigo e antigo sócio Jaime Gomes – com quem o ministro, sublinha a acusação, tem uma “relação de grande proximidade pessoal, tratando-se entre si por irmãos”.
O caderno de encargos foi encaminhado ao ministro pelo secretário de Estado da Administração Interna João Almeida – que, por sua vez, o recebera do seu adjunto, Frederico Alves, com a indicação de que estaria fechado. Ainda assim, Miguel Macedo informou Jaime Gomes, no email, que essa indicação “não invalida que se faça uma revisão para detectar eventuais gralhas e omissões”.
O grupo espanhol O novo concurso encerrava algumas alterações face ao de 2012. Por um lado, previa uma diminuição de horas de voo (aumentando o valor pago por cada uma). Deixou também de ser necessária a apresentação de documentos como o certificado de prestação de serviço de gestão de aeronavegabilidade e de prestação da operação e manutenção das aeronaves aquando da apresentação das propostas – podendo os concorrentes apresentar estes comprovativos no momento da consignação dos helicópteros. E esta alteração, acredita o MP, era susceptível de “em abstracto favorecer, pelo menos no momento da aceitação das propostas, empresas não detentoras dos certificados”.
Como era, aliás, o caso de um grupo espanhol chamado FAASA, com o qual o Estado português já tinha mantido anteriormente contactos para o aluguer de aeronaves para combater os fogos. E cujo CEO era Miguel Ángel Almagro, que detinha negócios com o amigo e antigo sócio de Miguel Macedo desde 2012. A FAASAacabou, no entanto, por não concorrer ao concurso, ainda que, de acordo com a acusação, tenha vindo a ser subcontratada mais tarde pela Everjets, a empresa vencedora.
Intermediários Os negócios da FAASA com o Ministério da Administração Interna e a Protecção Civil, sustenta o Ministério Público, foram intermediados por uma empresa chamada Fitonovo, criada em 2009 e com ligações negociais à JMF – sociedade de que Miguel Macedo fez parte até entrar para o governo e a que também pertenciam Jaime Gomes, Luís Marques Mendes e a filha de António Figueiredo (que seria uma testa-de–ferro do pai, também acusado no processo dos vistos gold).
A JMF foi extinta em 2013 e, enquanto existiu, celebrou um único contrato, com a Fitonovo, em Dezembro de 2011, para a “facilitação de contactos privilegiados no âmbito da contratação pública”. O acordo previa que a JMF recebesse 2% do valor de cada contrato assinado em Portugal. E, no âmbito desse contrato, a Fitonovo pagou mais de 31 mil euros à JMF, distribuindo depois o lucro pelos sócios.
O kamov chumbado Segundo o Ministério Público, em Maio de 2012, representantes da Fitonovo “intermediaram contactos” entre Jaime Gomes e o CEO da FAASA, relacionados com a actividade de operação e manutenção dos Kamov em Portugal. Nessa altura, o primeiro concurso ainda não tinha sido lançado (só o seria em Julho desse ano). Mais tarde, a Fitonovo interveio como interessada no âmbito do procedimento concursal e chegou, garante a acusação, a “pedir esclarecimentos” sobre o caderno de encargos. Ainda assim, não concorreu e o concurso ficou vazio.
Em Janeiro de 2013, Jaime Gomes terá enviado a Miguel Macedo, por email, uma proposta da FAASA para a gestão das aeronaves e a disponibilização de meios aéreos complementares à frota da EMA. Meses depois, a 5 de Agosto de 2013, já em plena época de incêndios, era aprovado pelo então secretário de Estado adjunto de Miguel Macedo, Fernando Alexandre, um ajuste directo para o reforço de meios aéreos. E a FAASA foi convidada a apresentar uma proposta para disponibilizar ao Estado português um Kamov adicional – convite que, sublinha o MP, não foi feito a mais nenhuma empresa. O negócio, porém, caiu por terra ao ser chumbado pelo gabinete jurídico da ANPC, que considerou haver incumprimento, por parte do grupo espanhol, de um requisito do caderno de encargos: possuir certificado de aeronavegabilidade e de manutenção e gestão. Este requisito viria, no entanto, a desaparecer do caderno de encargos do segundo concurso para a manutenção dos Kamov, lançado no ano passado. Contudo, o grupo não concorreu, tendo sido, no entanto, e segundo o MP, subcontratado pela Everjets, a empresa vencedora, novamente por intermédio da Fitonovo.
É por isso que o Ministério Público está convencido de que, ao enviar o caderno de encargos para Jaime Gomes, Miguel Macedo sabia que o amigo tinha “interesses económicos” no grupo FAASA. E que o objectivo terá sido “granjear-lhe uma informação privilegiada, potencialmente geradora de vantagens de natureza económica no mercado concursal”.