A cantora e compositora Aline Frazão lança esta sexta-feira o seu terceiro álbum. “Insular” foi produzido por Giles Perring na ilha de Jura, na Escócia, e a guitarra é de Pedro Geraldes. Este novo disco afastou-se um pouco do jazz e acabou por resultar numa linguagem que juntou o frio escocês e o calor africano.
Temos os discos “Clave Bantu”, “Movimento” e, agora, “Insular”. São três momentos independentes? É uma continuação ou uma ruptura?
Tem um pouco de ruptura e de continuação. Os três discos têm um lado muito autoral. Isso marca necessariamente uma continuidade porque continuo a ser eu a escrever a maior parte das músicas e a estar muito presente na concepção do disco, na produção e nos arranjos. Os três têm muito de mim, em momentos diferentes, mas este continua a ser eu. De ruptura, também. Não sei o que terá mais. Na verdade, é uma pergunta com diferentes respostas. Há bastante de ruptura porque é uma abordagem diferente a nível sonoro, novos instrumentos. Há um afastar da linguagem do jazz explícita e aproximação ao rock. A entrada de Pedro Geraldes, dos Linda Martini, o sítio onde foi gravado – uma ilha escocesa –, com um produtor inglês, há muitas coisas novas aqui. Há um contacto maior com uma temperatura mais fria, uma forma de fazer música mais a norte, menos a sul. Um jogo de atitudes que acabam por ficar harmoniosas nesse disco, acho.
Os rótulos podem ser injustos, mas acabam por ser uma muleta. Este disco é world music, bossa nova, MPB, jazz, tudo isso ou nada disso?
Simplificaria com a etiqueta de world music. Trata-se de simplificar. Uma cantora e compositora angolana, ligada a Luanda, com os dois discos anteriores talvez mais ligados a Angola.
“Insular” de geografia ou de estado de espírito?
É mais de estado de espírito. O lado geográfico é mais evidente… gravado numa ilha, no norte, mas é mais espírito, tem a ver com as várias definições para ilha, para isso de ser insular, de estar isolado. Isolamento, solidão, individualismo, identidade, colectividade: todos os conceitos são explorados ao longo do disco de forma mais ou menos assumida, sem querer ser pretensiosa com conceitos tão grandes. Acaba por ser o fio condutor do disco.
O seu disco “Clave Bantu” foi gravado em Santiago de Compostela. Agora, a gravação na ilha de Jura, na Escócia. Foi pela produção de Giles Perring ou há aqui um padrão?
Circunstancial. Gravei em Santiago porque estava a morar lá nessa altura. Mudei muitas vezes de residência nos últimos dez anos. O segundo disco, “Movimento”, gravei aqui em Portugal, em Almada, e agora residia em Barcelona quando fui gravar a Jura. O convite da Escócia tem uma história específica. O Carlos Seixas, com quem trabalho e trabalhei durante o ano passado, sugeriu-me o Giles Perring para produzir o disco e falou-me do estúdio Sound of Jura e do trabalho do Giles. Falou-me da não conexão de referências entre mim e o Giles, o facto de ser uma combinação improvável, de certa forma, e da ilha, de eu ir para lá e o que poderia acontecer. Achei tudo isso louco, mas muito interessante. Então conheci o Giles na Alemanha, quando estava a fazer uma tournée, e gostei que ele tivesse entendido o meu trabalho de uma forma muito simples. Entendeu a proposta, apesar de vir de um sítio tão diferente. E como estava com vontade de ir para um sítio diferente, encontrámo-nos na ilha de Jura. Além do Pedro Geraldes, estavam outros músicos sugeridos pelo Giles, escoceses e ingleses, e foi assim que aconteceu. Não é que tenha sempre de gravar fora, mas neste caso essa mudança geográfica era importante para a própria proposta: uma espécie de residência artística, ir à procura de outros cantinhos musicais para encaixar as minhas músicas.
Como era o dia-a-dia na ilha?
Fui mais solitária, mais caseira. A casa é muito grande, familiar. O estúdio é na sala de estar, uma antiga escola que foi transformada numa casa particular e depois no estúdio do Giles. Passei muito tempo dentro de casa. Fazíamos as refeições juntos, conversávamos muito, ouvíamos música ao fim do dia. Entre a vivência da casa, a convivência e a paisagem. Ao sair de casa, chegando à porta, era a montanha e o mar. Não havia vizinhos. Sossegado, um entorno completamente rural. Vacas, galinhas, pássaros. Estive mais recolhida a explorar esse sossego.
Havia uma hora para gravar?
Era mais durante o dia. À noite gravei umas vozes. Em geral gravávamos durante todo o dia. Parávamos para comer. Alguém cozinhava. Descansávamos e voltávamos a gravar. Conforme quiséssemos, sentíssemos. Se quiséssemos parar por estarmos cansados, era sair e dar um passeio, espairecer, tomar um chá. O inglês, que é tão bom.
Idílico?
Foi um privilégio gravar lá. É um estado de espírito muito propício a focarmo–nos nas canções. Gravar numa cidade implica muitas vezes chegar ao estúdio e não ter sítio para estacionar. Temos de, paralelamente, tratar da nossa vida, e há sempre uma interrupção do fluxo criativo. Ali era mesmo só estar ali.
Referiu a “decisiva” participação de Pedro Geraldes, dos Linda Martini. Porquê decisiva?
Convidei o Pedro para participar numa tournée europeia antes de ir para Jura. E o objectivo foi que ele participasse comigo no processo de pré-produção do disco e que encontrássemos uma nova linguagem, juntando o que ele traz, uma tradição rock, punk, noise… do rock alternativo em Portugal, dos Linda Martini, e eu que venho de um lado mais bossanovesco, jazzístico e africano. E ver o que poderia acontecer nesse encontro. Depois convidei-o para gravar o disco comigo. Estivemos juntos na pré-produção, nos arranjos das canções e, para quem conhece os outros discos, nota que há uma diferença muito grande que é acrescentada pela guitarra do Pedro, a forma de tocar, a entrega, a atitude intensa, emocionalmente densa, e isso acrescenta muito ao disco. Por isso acho que a participação dele é decisiva.
Tocou em Cabo Verde, Quénia, Etiópia, Tanzânia, Alemanha, Brasil, Portugal, entre outros países. Alguma viagem marcante?
Etiópia. Adis Abeba. É maravilhosa. Um país super-interessante culturalmente. Com uma história muito rica. Com uma cultura milenar muito bem cuidada, conservada. Uma música muito interessante, uma dança fascinante, e as pessoas… Tive uma experiência curta em Adis Abeba, mas realmente marcante na minha vida. É fascinante do ponto de vista arquitectónico, cultural, a mistura de culturas e a língua. Tive oportunidade de ir algumas vezes a um bar [Fendika] que tinha música e dança ao vivo. A experiência de estar naquele bar, que é do bailarino Melaku Belay, e de estar em casa dele a ouvir música, tomar o café etíope e conversar, de uma forma tão despojada e tão autêntica, foi uma experiência de contraste com a vivência europeia, contemporânea. As coisas são mais simples. Uma experiência que me aproximou da esperança, pessoas bonitas.
Porém, continua a assumir-se como urbana. E a viver em cidades.
Tirando Santiago de Compostela, a primeira experiência numa cidade pequena, hoje em dia vivo em cidades maiores também por questões de trabalho. Neste momento, em Lisboa. Mas vivo muito recolhida. Não me relaciono com as cidades como quando vim estudar, há quase dez anos. Se pudesse, talvez vivesse num sítio mais pequeno. Neste momento é mais difícil por causa das viagens. Mas sim, sou urbana e luandense, que é pior que ser urbana. Luanda é uma cidade bastante caótica e os luandenses com mau feitio ocupam demasiado espaço em todos os sentidos. Sonoro, gestual… gera muito trânsito, de carros, de ideias.
Onde gosta mais de tocar?
Gosto muito de tocar em Lisboa. Tenho um público muito querido, fiel, generoso. Em Luanda é uma sensação de familiaridade, de compreensão, um pouco mais íntimo. Uma escala mais pequena que Lisboa. E gosto da experiência de tocar na Europa. Aprecio tocar na Alemanha pela sensibilidade das pessoas. O desenvolvimento económico proporciona essa capacidade de desfrutar da música, da cultura.
Foi pela proximidade que o lançamento do disco foi em Luanda?
O primeiro lançamento foi em Luanda porque é a minha terra. Porque devo este disco a Angola, que é de lá que eu venho, onde nasci. A história é um pouco esta. É ir numa viagem e voltar com o disco. É uma vontade minha de mostrar primeiro o álbum lá. E ter família e amigos em Luanda importa muito. Apesar de não viver lá, estou muitas vezes em contacto. Devia este disco à nova geração musical angolana, à qual pertenço. E ao público.
Há datas em Portugal?
Em Janeiro 29 no Porto, e 30 em Coimbra. A 5 de Fevereiro em Lisboa.
No seu último texto publicado no “Rede Angola” fala sobre a tragédia em Paris. Recusa ser Charlie ou Paris porque se sente manipulada com o que chama de “malditos trending topics”. Quer explicar?
Não gosto da banalização das tragédias. Não gosto que se vivam coisas importantes de uma forma superficial. E muitas vezes, a forma como tragédias como esta são abordadas na imprensa e nas redes sociais não me transmite confiança, seriedade, o compromisso que devemos ter para com estes acontecimentos. Tentar ir um pouco mais à raiz das questões e não esquecer no dia seguinte. Os trending topics são fenómenos comunicacionais das redes sociais que representam a imagem da superficialidade. Acabam rápido, vêm outros: Paris, um jogo de futebol, o novo namorado da actriz de cinema. Não consigo entender essa mistura. É obscena e revoltante.
Este tipo de reacções apressadas são inconsequentes? São empatias armadilhadas?
Em grande parte, sim. O problema é que isso se vai repetindo e as reacções continuam as mesmas. A televisão tem um impacto muito grande no discurso das pessoas. Se não vamos ao fundo das questões, não nos protegemos realmente contra a manipulação. Se não sabemos as razões por que as coisas acontecem, estamos mais vulneráveis a ser manipulados, e assim se cultivam sentimentos de xenofobia, medo, preconceito, apoio a determinadas decisões políticas que não serão as mais acertadas. Gera-se um clima de muita instabilidade. Depois falamos de muitos mortos, de gente como nós, não só aqui, mas em Beirute ou na Nigéria. Essa é outra: a forma como as pessoas se relacionam com as tragédias é diferente. Posso compreender, mas a proximidade não justifica tudo. Neste caso, o contexto até está relacionado.
Por cá havia, sobretudo após a revolução, os cantores de intervenção; em Espanha, os cantautores. Enquadra-se nalguma destas designações?
Identifico-me com o movimento dos cantautores por ser compositora, autora e guitarrista. Dentro da canção de intervenção, parcialmente. Tenho várias canções mais ligadas à política, ao protesto, mais ou menos explícito, mas não me vejo como cantora de intervenção porque a maior parte do meu trabalho não se restringe a essas questões.
Sente-se mais cantora, compositora, guitarrista ou produtora? E o que lhe dá mais prazer?
Cantora. De longe o que me dá mais prazer. Gosto das outras funções, da escrita particularmente.
Cursou Ciências da Comunicação. Foi importante para essa escrita?
Importante. Era uma inclinação que tinha desde pequena, interessar-me pela comunicação, pública e não pública.
Mas pensou ser jornalista?
Sim. Pensei ser engenheira civil, e depois jornalista. Entrei na faculdade e o contexto académico encaminhou-me para o audiovisual. Fiz um estágio numa televisão em Madrid, mas comecei a tocar em bares, a fazer o circuito madrileno, e entrei na música. Quando vim gravar o álbum “Momento”, terminei a licenciatura.
Como vê este processo dos activistas angolanos que agora começaram a ser julgados?
Estava em Jura a gravar. Como cidadã angolana e parte da sociedade civil que se quer mais participativa e crítica em Angola, acompanho o caso com muita preocupação. Têm sido meses muito difíceis e com muitas questões em cima da mesa. Como qualquer cidadão angolano minimamente participante na política do país, estamos atentos, preocupados, apreensivos e na expectativa de que haja bom senso e isenção na justiça. Caso contrário, é uma clara ameaça à liberdade de expressão em Angola. Como jovem e angolana, preocupa-me muito o que está a acontecer e as consequências. Mas não perco a esperança. O julgamento está a decorrer e vamos ver o que vai acontecer.
Mantém a esperança no seu país?
Tenho esperança em Angola e o tempo não pára. Há muito futuro pela frente. É um país muito jovem, isto apesar de não se justificarem os erros que foram cometidos, decisões, formas de gerir, os valores da sociedade. Mas tenho toda a esperança. Confio muito nas novas gerações e há que ser activo, propor, participar em todas as áreas da sociedade.
Nasceu e cresceu em Luanda. Vive em Portugal. Parte da sua música tem influência brasileira. É uma cidadã do mundo? Sente mais alguma destas nacionalidades?
Só tenho uma nacionalidade, que é a angolana. Não me restrinjo a isso. Tenho uma visão internacionalista do mundo, da vida, dos valores, da política, da justiça. Importa-me que as coisas corram bem em todas as nações. A nível cultural tenho uma relação muito estreita com o Brasil. A minha avó é brasileira. Gosto muito da música do Brasil e do país. Tenho um avô cabo-verdiano. Na minha formação ouvia em casa músicas desses lugares todos. Em Luanda temos uma cultura muito mestiça. Ouvimos música de todas as partes do mundo. É assim há muitos anos. Então essa mistura acaba por fazer parte da minha identidade.
Insular de Aline Frazão
(Norte-Sul; Valentim de Carvalho)
Músicos: Aline Frazão, Pedro Geraldes, Simon Edwards, Giles Perring, Sarah Homer, Esther Swift, Toty Sa’Med e Guy Evans. Produção: Giles Perring. É editado amanhã.