Não vejo filmes de terror. Não leio romances. Não perco tempo com livros de aventura.
Se há ficção que me atrai é a ficção pura e total, a da imaginação irrefreada da Guerra das Estrelas. E tudo isto porque a vida real já me esgota toda a quota de emoções suficientes: sejam as românticas, sejam as de aventura e espionagem, sejam as de terror.
Estranha-me, até, que não se passe o mesmo com os meus compatriotas. Vivendo num País sem guerras, sem atentados, mas cheio de misérias de toda a sorte, em que a destruição urbanística vai de mão dada com a degradação sócio-económica e humana, em que os ghettos estão disseminados pelas ruas “direitas” das cidades, não creio que a ficção seja uma necessidade. Muito menos a de terror.
Mas quando nos confrontamos com eventos como o 11 de Setembro, em Nova Iorque, com o 13 de Março em Madrid, o 7 de Julho em Londres, o 13 de Novembro em Paris, aí é toda a quota de terror que pode sãmente ser admitida pela emoção de qualquer pessoa minimamente “normal”. Haverá terror maior do que imaginar os nossos pais, mães, filhos, maridos e mulheres chacinados porque comiam descontraidamente uma pizza num Restaurante ou assistiam pacificamente a um concerto em Paris? Decepados, feridos, incapacitados para a vida, porque acidentados quando numa manhã de fim de Inverno iam para o trabalho? Desaparecidos até os seus restos mortais porque calcinados com ferro e cimento enquanto trabalhavam numa torre de escritórios, ou simplesmente lá tinham ido naquela fatídica data a uma reunião?
E não é porque me não comova igual cenário no Quénia, na Somália, em Angola ou na África do Sul. Comove-me o mesmo. A identificação é que é distinta, e é psíquica, não rácica. Não me venham dizer que me dói mais o sofrimento europeu por ser europeu, e consequentemente porque seria supostamente racista. Não! Dói-me mais o sofrimento do meu vizinho do que do meu distante, tal como sinto empatias maiores com os que me são patrícios do que com os que me são longínquos. E isso, que é algo absolutamente normal em termos científicos, médicos, psiquiátricos, nada tem de racismo. Tem de humanidade. O Bracarense sofrerá mais com a pequena desgraça da vizinha do 3º Esquerdo, do que com o grande azar do Louletano. Ou não será absolutamente humana, e veraz, a frase da tira de BD da Mafaldinha quando nela se lia: “Mas o meu problema foi pior… Porquê? Porque foi meu!”.
Ora o terror não é um estilo literário, nem cinematográfico. O terror não é literatura. Nada tem de poético. Nem sequer de romance de cavalaria ou bravura.
O terror é o que é: é morte, é sangue, é violência… e sempre gratuitos, sem justificação legítima, sem causa razoável. Por mais fundamento que cada um dos que o defende procure encontrar, no fundo no fundo o terrorismo é a violência infundada e se causa, apenas para afirmação de interesses próprios, pessoais, grupais. Apenas afirmação de anti-humanidade.
E foi assim desde que o conceito foi criado, precisamente em França, precisamente vai para três séculos.
O terrorismo, enquanto morte, sangue, violência, só pode ser defendido, potenciado, praticado por gente insana, mentalmente perturbada. Gente que numa sociedade humana ideal não existiria. Logo, gente que os Livros Sagrados do Cristianismo, do Islamismo, do Budismo, do Induísmo, nem sequer admite que possa existir. O mal é tresler-se literatura religiosa. Inventar cruzadas, intifadas, seja lá o que for, tudo em nome de Deuses que conceptualmente nunca poderiam querer as vontades que os crentes lhes imputam. Daí a insanidade mental do terrorista.
Mas terroristas existem. E existem terrorismos. São de todas as cores e formatos. Estranhamente, quase todos animados mais – oficialmente – por supostos mandatos religiosos, do que por declarados propósitos sócio-políticos, económicos, ou pura e simplesmente de tomada violenta do poder. Quando são estes os reais motivos escondidos por detrás da capa ideológica de uma qualquer fé.
Numa sociedade ideal os psicopatas que praticam o terrorismo estariam bem afastados do convívio social, em instituições de saúde mental. E em algumas sociedades ditas ocidentais, mas em que as penas capitais são admitidas, são gente que da sociedade seria expurgada mais radicalmente por esses sistemas penais.
Mas não se vive em sociedades ideais. Nem sequer em sociedades mentalmente sãs. Vivemos num mundo que de tão globalizado que é perdeu toda e qualquer referência ao local onde se está.
E no ponto mais baixo da escala dos nacionalismos, dos patriotismos, está a própria velha Europa, berço daquela civilização milenar que veio a desembocar na Liberdade, Igualdade e Fraternidade, na Tolerância, na procura do equilíbrio entre o desenvolvimento económico e a intervenção social protectora dos mais pobres e desvalidos. Essa Europa, supostamente a nossa Europa, levou os ideais que proclama tão longe que se deixou descaracterizar. Admitiu tudo. Até que as ditaduras externas dos terroristas que hoje a violentam e matam determinassem como vivemos nas nossas vilas e cidades europeias. Se se admitem crucifixos nas escolas. Clérigos em cerimónias públicas. Etc. O próprio laicismo, fruto de tantos dos outros ismos em que o século XX, foi boa causa do problema: abriu mais uma brecha no que era a muralha que poderia evitar o fim da Europa.
Com efeito, o liberalismo, o capitalismo, o comunismo, o anarquismo, o laicismo, conseguiram numa centúria apagar os traços culturais mais radicais que permitiram à Europa ser o que foi durante os últimos anos do Século XX: uma luz para a defesa dos direitos, liberdades e garantias de todos, fossem cidadãos ou estrangeiros, nacionais de primeira, segunda ou nenhuma geração. Apagaram-se as exigências do sangue. Apagaram-se as exigências do território. E com isso as exigências da nação: a Europa quis ser, numa perspectiva ecumenista, a terra de todos. A terra do progresso e da esperança para todos. E foi o livre pensamento, pelo qual tanto se lutou, que nos trouxe onde tristemente nos encontramos. Em que liberdade passará a ser sinónimo de insegurança. Igualdade equivalente de chacina. Fraternidade antónimo de solidariedade. E em que a tolerância será daqui a outros cem anos um valor empoeirado de que se ouve falar tanto como dos valores defendidos pelos Cátaros.
Vivíamos os últimos anos da década de ’70 do século XX e um verso de uma canção portuguesa dizia assim: “quem vier por bem, venha, venha, também, não importa, seja quem for!”. Esta frase, este simples verso, traduz em si tudo quanto a Europa fez, filosófica e juridicamente, pelo Mundo nas últimas décadas.
Terá sido pouco, dirão uns. Terá sido demasiado, dirão outros. E já estaremos, também aqui, a balançar entre os pratos da balança de novos “ismos”.
E para que dúvidas não subsistam, também nenhum maniqueísmo subjaz ao que aqui se escreve: não se entende que os terroristas são os “outros” e que as vítimas são os europeus. Os de pele branca e olho claro. Nada disso. Há terroristas de todas as cores, seja de pele, cabelos ou olhos. Seja de cabeça. E é assim porque há psicopatas de todas as raças, nações, proveniências, cidadanias.
Não há, neste pensar, uma divisão traçada entre bons e maus que passe por cor de pele, crença religiosa ou qualquer outro dos critérios da igualdade tão bem enunciados na nossa completíssima Constituição da República. Não!
Mas há aqui a clara afirmação de que só com armas, sejam elas de fogo, sejam elas legais, podemos lidar com o problema do Mal. Pois que é de Mal que se fala, quando fala de terrorismo.
Escrevi há bem pouco neste Jornal um texto que crismei “De onde vem tanto mal?”, aludindo a uma conferência havida na Fundação Calouste Gulbenkian. O próprio índice dos temas abordados dá resposta à questão. E também eu no meu texto a procurei dar. Da intolerância pelo diferente. Pelo que não segue os nossos padrões.
A Europa viveu séculos de muita intolerância, como que se viu com judeus e árabes. Mas passou-lhe. Evoluiu. Hoje as intolerâncias nos sistemas legais europeus desapareceram. Foram banidas à força da razão. E à custa de muitas vidas.
Mantém-se apenas, a intolerância, aninhada nos nossos cérebros, uns mais doentes que outros. Pelo “preto”, pelo “chinoca”, pelo “paneleiro”, pelo “traveca”, pelo “quefrô”. Mas para fazer face a essas intolerâncias doentes, o sistema prevê reacções. Se qualquer um de nós deixar essa intolerância arrufar de dentro de si, a Lei existe e bastará que seja actuada.
Porém o terrorismo global demonstra que isso não chega! Se queremos uma Europa como era a nossa, até há bem pouco, aquela que desde o Iluminismo conseguimos criar, caldeada numa tradição jurídica greco-romana e germânica, e testada a ferro e fogo nos momentos dolorosos das guerras e conflitos europeus dos últimos 300 anos, então teremos que repensar todo o quadro legal destinado a tratar daqueles em que a intolerância ultrapassa os limites máximos de patologia admitida.
Esses doentes intolerantes terão de começar a ser tratados com um novo enquandramento legal. Não é à toa que a ciência penal já desenvolveu algo a que chamou “Direito Penal do Inimigo”.
Talvez tenhamos é, durante esta última década, esquecido quem é o inimigo para esses efeitos. E basta passar os olhos pelo Facebook, correr mais umas quantas redes sociais de acesso livre, para encontrar terroristas em potência. Cá. Em terras lusas.
Gente que se regozijava com o 13 de Novembro em Paris porque, segundo afirmam, era a única forma de vir no futuro a afirmar o poder de outras cores: fossem ideológicas intra-europeias, fossem de cor de pele. Tal como se encontrava gente a procurar defender que a abertura total de fronteiras era um acto de caridade para com todos quantos, das suas terras, migravam para a Europa, fugindo do Estado Islâmico. Exageros recíprocos. Leituras apressadas incorrectas. Puro e simples desconhecimento da história. E muita falta de senso.
Tal como não há nenhuma Eurocracia, não pode haver Africocracias, Asiocracias, nem Americocracias. Tal como nem todos os Islâmicos são terroristas, também certo é que ninguém nos pode obrigar à força aceitar a islamização da europa.
O que um Europeu quer é poder viver numa terra em que no mesmo dia pode decidir, livremente, se entra numa Igreja Católica, Ortodoxa ou Protestante, numa Mesquita ou num tempo judaico. Se é de esquerda, ou de direita. Se é monárquico ou republicano. Se é religioso ou ateu. Esse é o espírito da liberdade, igualdade, fraternidade e tolerância da Europa que construímos. Pelos vistos demasiadamente confiantes na bondade alheia.
Aliás, a própria tolerância impõe aceitar que cada um queira e possa viver onde sempre viveu. Por séculos imemoriais. Ou que mude de terra, adaptando-se aos costumes do destino.
É que um Estado é isso mesmo: um povo, assente num território que conquistou para si, e onde implementou a organização política que melhor quadrava ao seu sentir e modo de viver.
Quem não aceita isto, pratica actos de guerra. Quem não aceita isto pratica actos terroristas.
E quem comete actos terroristas não merece ser tratado com qualquer civilidade.
Como alguém disse um dia, cabe lembrar agora à Europa: “Caveat! Ne cadas!”.
Advogado