Portugal foi a votos há 39 dias. Há 23 dias, António Costa disse em Belém estarem “criadas condições para o PS formar um governo que disponha de apoio maioritário”. Há dois dias, o governo PSD/CDS foi deposto e foram divulgadas as posições conjuntas do PS com o Bloco de Esquerda, o PCP e o Partido Ecologista Os Verdes sobre a solução política. Vinte e três dias depois, o que temos não é uma coligação pós-eleitoral, não é um acordo, é uma posição conjunta que fica aquém do que foi dito na comissão política nacional do PS e escrito no seu comunicado, nomeadamente no que diz respeito à garantia de não aprovação de eventuais moções de rejeição ou de censura. A recusa era taxativa, agora está sujeita a exame em reuniões bilaterais. Como não fizemos nenhum voto de silêncio para ingresso no Mosteiro da Cartuxa, continuaremos a dizer o que precisa de ser dito.
Como poucos, num clima de certezas, de esfusiante euforia e de um maniqueísmo serôdio, tivemos oportunidade de expor as nossas dúvidas políticas sobre este caminho e, em coerência, de votar contra esta solução. Não respeita o sentido do voto popular, aprisiona o PS aos partidos à sua esquerda, afasta o partido do eleitorado moderado do centro e dificulta a tomada de decisões nas questões da construção europeia, da zona euro e do atlantismo.
Como poucos, nos últimos quatro anos, em vários suportes, quando alguns dos efusivos de agora se encolhiam, criticámos o rumo do governo da direita pelo seu desrespeito pela dignidade humana, pela tentação em fragilizar funções essenciais do Estado, pela inconsistência dos resultados perante tamanha austeridade, carga fiscal e cortes nos rendimentos dos portugueses, e pela panóplia de negócios, de opacidade e de abandono do território. E, no entanto, a direita ganhou as eleições.
Derrubado o governo de Passos e de Portas, encerra-se a parte negativa e poder--se-á iniciar a fase da construção e do enfrentar da realidade. A história aconselha-nos a acompanhar com prudência as tendências, as evoluções e os resultados. Na fita do tempo, a esperança da perestroika e da glasnost de Mikhail Gorbatchev estão apenas alguns anos atrás da realidade da Federação Russa e da liderança de Vladimir Putin.
É irónico que perpasse nas posições conjuntas com o BE, o PCP e os Verdes uma linha de reposição, de desconstrução do que a coligação PSD/CDS fez e de regresso ao que tínhamos em 2011, quando as políticas do PS eram consideradas de direita e o PS era “farinha do mesmo saco”. Afinal, ao contrário do afirmado desde sempre pelas esquerdas, um governo do PS não é a mesma coisa que um governo de direita.
A profusa divulgação da acta da convergência à esquerda para a criação do Serviço Nacional de Saúde em 1979, serviu para sublinhar que nos 36 anos seguintes, o PCP, o Bloco nas suas anteriores expressões políticas e os Verdes desde que existem nunca se disponibilizaram para viabilizar um único Orçamento do Estado. Como se sabe, não há omeletes sem ovos, mas todos dizem estar na primeira linha da defesa do Serviço Nacional de Saúde, da escola pública e da protecção social. Será que vão viabilizar os Orçamentos a partir de agora?
Será que o PCP, o Bloco de Esquerda e Os Verdes vão mudar de narrativa na fase da construção das políticas ou o registo vai continuar a ser o da era bota-abaixo? É que a ausência da governação, as fragilidades do texto das posições conjuntas e os sinais contraditórios persistem como se muito pouco tivesse mudado. O aumento do salário mínimo é insuficiente, segundo a CGTP, as manifestações vão continuar e ninguém abdica de nada na órbita da sua autonomia na acção.
Num quadro marcado pela reposição e pela recuperação dos equilíbrios anteriores, será que haverá espaço para algum impulso reformista, para a modernização, para a construção de respostas para as novas realidades sociais e para os que estão fora do quadro de respostas construídas nos últimos 40 anos?
Será que o nível de compromisso alcançado não se projecta numa permanente disputa do mercado eleitoral comum no plano partidário e no plano sindical, numa espiral de constante leilão em torno dos aspectos positivos e de demarcação das dificuldades e das más notícias?
Depois de quatro anos de cortes, a crispação, a incerteza e as opções dos últimos dias prenunciam que vai ainda tardar a costura. Há muita volatilidade nos valores, nas regras e na motivação dos políticos e da política. A paciência dos portugueses com o sistema político continua a esvair-se. Dizem que vivemos um momento histórico, será?
Escreve à quinta-feira