Tem literalmente África no peito. Mas nesse mesmo peito, onde mora o coração, também cabem as infinitas saudades de Portugal. Marta Baeta saiu do país, como tantos outros jovens fizeram, sobretudo nestes últimos anos. Mas o seu caso é bem diferente. Não foi em busca de um salário digno numa qualquer cidade cosmopolita ou num país considerado emergente, como Angola ou o Dubai. Nem tão-pouco foi por recomendação dos nossos governantes. Foi sozinha para a maior favela do mundo, Kibera, na capital do Quénia, Nairóbi, onde criou o seu projecto de empreendedorismo social From Kibera With Love, uma iniciativa que está a ajudar cerca de 65 crianças (e as respectivas famílias) em áreas tão fundamentais como a educação, saúde e alimentação, mas também cultura e desporto. E como? Através de donativos, do apadrinhamento das crianças e da venda de peças de artesanato quenianas em feiras.
Tudo começou em 2012 quando, no âmbito dos estágios no estrangeiro da AIESEC, Marta achou que deveria dar um “forte abanão à sua vida”, optando por um destino que desafiasse a sua condição humana. Algo que fosse uma verdadeira aventura. Uma realidade que fizesse sentido conhecer e que “mexesse com a sua capacidade de resiliência”, explica. Da lista de destinos possíveis, a favela de Kibera foi o que mais lhe agradou, exactamente por ser o mais complicado. Escolher um paraíso para “pôr fotografias bonitas no Facebook” não era opção. Seguiram-se três meses de estágio em Kibera. “Inicialmente ia dar aulas. Acabei por dar muito poucas. Os meninos falavam muito pouco inglês. O dialecto do Quénia é o suaíli, que tive de aprender minimamente para conseguir entender--me com eles. Dei-lhes algumas aulas, mas o que mais fazia era brincar com eles. Ensinei-lhes tudo o que era jogos e canções que aprendi quando era miúda. Ensinei-lhes canções em português e adoravam. Diziam ‘in Portuguese’ e abanavam a cabeça, contentes, embora não percebessem nada”.
O dia-a-dia em Kibera está longe de contemplar as comodidades que, uns mais que outros, temos em Portugal. No início, Marta ficou a morar fora da favela, em Nairóbi. “Acordava entre as 5h e as 7h da manhã. Tomava o pequeno-almoço na rua, geralmente era chapati, uma espécie de crepe, mas sem ser doce. Também comprava ananás ou cana–de-açúcar para me dar energia”, conta, explicando-nos que a fraca variedade alimentar e a rotina exaustiva a fizeram perder peso. Mas não a esperança de ver concretizado o seu projecto de voluntariado. Apesar das barreiras de um país corrupto – Marta chegou a ser expulsa do país por ter denunciado uma situação de corrupção numa escola, onde foi enganada pelo director, que ficou com 80% do valor da inscrição. Nada que a fizesse desistir. Meses depois regressava ao Quénia.
E como era fisicamente a favela? “O cheiro é horrível. Indescritível.” Sem saneamento básico, Kibera assemelha-se a um aterro sanitário, construído por lixo e em cima de lixo sedimentado. Os esgotos a céu aberto são tapados com placas de madeira. “Existem casas de banho públicas para mais de dois mil habitantes e, durante a noite, as pessoas fazem as necessidades em casa, para não terem de andar na rua, especialmente as mulheres, porque podem ser violadas. Fazem-no em sacos de plástico que depois atiram para a rua – este procedimento é conhecido como flying toilet, qualquer coisa como casa de banho voadora” em português. “Pior que isso foi ver crianças no meio da rua, no meio daquela desgraça total, sozinhas, sem ninguém que olhasse por elas, na porcaria, numa condição que não é temporária, mas sim definitiva… À espera de um milagre que os salve daquela condição.”
No arranque de From Kibera With Love, Marta começou por ajudar 16 crianças: conseguiu, através do sistema de apadrinhamento que foi divulgando nas redes sociais, inscrevê-las num colégio, com direito a uniformes, livros e alimentação para um ano lectivo. E prosseguiu com o “sonho”. Olhando para trás, reflecte: “Aconteceu tudo tão rápido que nem tenho noção.” Hoje já tem um espaço de actividades, uma espécie de ATL para onde as crianças vão depois das aulas. “Temos aulas de arte, os miúdos fazem os TPC, damos porridge ao lanche, fazemos dança ao fim-de-semana e damos explicações todos os dias.” Mais, Marta já conseguiu contagiar alguns amigos que lhe vão dando uma mãozinha: “Tenho grupos de voluntários a ajudar no Porto, Açores (Pico), Lisboa e Barreiro.” Até já recebeu também dois voluntários no Quénia. Tudo pelos “seus meninos”, como lhes chama. É a concretização do sonho de uma vida.