Dois mil e onze. Argentina, 40 milhões de habitantes. Argentina, oitavo maior país do mundo. Capital: Buenos Aires, palco da final da Copa América. De resto, mais sete cidades-sede. A mais próxima é La Plata, a 59 km. As outras são no fim do mundo: Santa Fe (476), Córdoba (770), Mendoza (1058), San Juan (1126), Salta (1617) e San Juan de Jujuy (1654). É grande, isto. Enorme.
Não se pode acompanhar tudo, ainda por cima com o vulcão chileno a dar sinal de si, a espalhar cinzas, a fechar aeroportos. Elas andam por aí. Encobrem o Sol nas ruas encafuadas. E fecham esplanadas de restaurantes (os donos queixam-se mas não querem sujar toalhas, talheres, copos e, vá, pessoas). Se de avião a missão já era difícil, de micro (autocarro) então…
De repente leio o Brasil está em Buenos Aires. Sorriso. Largo. Em Buenos Aires. É aqui mesmo. Leio atentamente o nome do hotel e aponto: Resort Sofitel de Cardales, em Campaña. Mas não, não é em Buenos Aires. É na província de Buenos Aires e isso significa mais uns quilómetros, 61 para ser exacto. Até se diz, por brincadeira, que os brasileiros demoram mais tempo de Buenos Aires ao estágio que do Rio de Janeiro a Buenos Aires. Aqui é Buenos Aires, mas não é. É outra Buenos Aires. Outra realidade. Outro mundo. Vêem-se carros importados. Vê-se o Sol.
Vêem-se casas enormes. É aí que o Brasil está. Num hotel de luxo, com campos de golfe (campos, no plural), um
spa, quatro piscinas e os indispensáveis campos de futebol (de novo no plural). É um mundo à parte. Às salas de convenções e reuniões, deram-lhes nomes deste mundo: Louis Pasteur, Louis Leloir, Albert Sabin. O Brasil está longe. De tudo e de todos. Ou talvez não…
Na sala de imprensa, cheia de brasileiros e mais brasileiros, deparamo-nos com uma vivenda tamanho XXL. Ela está ali, a uns 30 metros, se tanto. E está decorada com globos argentinos à volta das seis colunas que suportam a casa. Globos XXL, claro. É uma das residências mais elegantes de Cardales. E quem vive ali? Alguém será, aquilo está tudo muito bem tratado e cuidado. Não custa nada perguntar. E a resposta é do mais imprevisível possível: Carlitos. Quem? Tévez. Esse mesmo, aquela casa é de Tévez. E há um jornalista brasileiro com mais coragem que todos os outros: “Há dias toquei à porta. Arrisquei. Atenderam-me e sabe quem era? O Tévez. Ele mesmo. De jeans e camisa curta, muito descontraído. Perguntei-lhe se estava a tomar notas dos treinos do Brasil e ele até brincou, fez-me o gesto de escrever num bloco de apontamentos fictício. Depois fechou-me a porta, mas antes soltou o pedido de desculpa deles, ‘lo siento’.” Ora essa, Carlitos, chega esse “lo siento” para lá.
Tévez é um dos grandes.Dos maiores que há. E basta-lhe um pormenor. Cinco de Fevereiro é um dia abençoado para se nascer. Futebolisticamente falando, lá está. Veja-se lá este naipe de artistas: Ronaldo, Neymar e Tévez. Os dois primeiros falam português, o terceiro é mais o castelhano.
Carlos Alberto Martínez Tévez. Um vencedor nato. Nos seis clubes da carreira, só não se sagra campeão nacional pelo West Ham, em Inglaterra.Ainda assim, evita a descida de divisão no último suspiro com um golo solitário em Old Trafford. De resto, é pau para toda a obra. Boca, campeão argentino em 2003. Corinthians, campeão brasileiro em 2005. United, campeão inglês em 2008 e 2009. City, campeão inglês em 2012. Juventus, campeão italiano em 2013 e 2014. Boca Juniors, campeão argentino mais vencedor da Taça da Argentina em 2015. Pelo meio, é dele o 1-0 da Argentina sobre o Paraguai na final olímpica em 2004.
Joga enormidades, é campeão em todo o lado. E volta ao Boca, aos 31 anos. Se o River Plate apadrinha os regressos de três clássicos como Lucho, Saviola e Aimar, o Boca chama Tévez e organiza uma produção hollywoodesca em Julho, quando o Boca só tem dez vitórias em 19 jogos.
O estádio está cheio como um ovo e até o “más grande de todos” está lá. Diego. Com ele, uma bandeira XXL: “Gracias, Carlitos, por volver. Familia Maradona.” A faixa vai parar lá abaixo e Tévez apanha-a. Acto contínuo, toca no coração e agradece em alta voz: “¡Sos lo más grande!”
É o início de uma festa sem fim. Os adeptos entoam então um cântico anti-River, “el que no salta se va a la B”, e Tévez salta, feliz da vida. “Boca es único, nadie va a entender el sentimiento de Boca, solamente los bosteros”, numa alusão ao apelido dos adeptos do Boca. De repente, Tévez põe-se de joelhos no chão e beija o relvado, à João Paulo II. Os decibéis sobem consideravelmente, é a loucura.
Com 38 golos em 110 jogos entre 2001 e 2005, Tévez é tricampeão em 2003 (da Argentina, da Libertadores e da Taça Intercontinental). No ano seguinte é ele quem dá a Copa sul-americana com um golo aos 28’ vs. Bolívar, em Dezembro de 2004. É o seu último golo pelo Boca. Adiós. É para siempre?
Noooo, claro que no. O homem tem princípios. Um pouco à imagem de RuiCosta no Benfica. O sonho comanda a vida: se é para acabar a carreira no Boca, é para acabar no Boca. Sem mas nem meio mas. É assim e pronto. Em 12 jogos com Carlitos, o Boca ganha dez e sagra-se campeão argentino a uma jornada do fim. Quatro dias depois, Tévez levanta a Taça da Argentina (2-0 ao Rosario Central). É só a segunda dobradinha de sempre do Boca, a primeira desde 1969. E agora? É descansar na tal vivenda em Cardales, que isto de ganhar todos os anos também mói. E esperar que nenhum jornalista brasileiro o acorde com um toque de campainha.