Günter Schabowski. O saltador de muros

Günter Schabowski. O saltador de muros


Entrou para a história por erro. O seu equívoco derrubou o Muro de Berlim. Morreu no domingo passado, aos 86 anos de idade.


Foi da Juventude Hitleriana no tempo de Hitler, do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED) quando os comunistas mandavam na RDA (República Democrática da Alemanha) e morreu nas fileiras da CDU, durante o consulado da chanceler Angela Merkel. Esteve sempre do lado de quem manda. Na Alemanha de Leste tinha o cognome de Wendehals (torcicolo), um pássaro que consegue rodar a cabeça 180 graus.

O cantor dissidente Wolf Biermann, alemão ocidental e comunista que escolheu viver na RDA, para ser posteriormente expulso pelo regime e impedido de regressar à Alemanha de Leste, diz na sua canção mais conhecida, “Ermutigung” (“Encorajamento”), dedicada a um amigo detido pela polícia política da RDA, a Stasi: “Não deixes que a dureza dos tempos te tornem duro.” Tanto a história da RDA como a de Günter Schabowski são duras.

“Eu tinha só 16 anos quando a guerra acabou. Estava num campo nazi, onde os jovens da minha idade aprendiam a usar armas. Tínhamos sido retirados de Berlim e constituíamos as últimas reservas que os nazis ensinavam a usar bazucas”, reza o depoimento de Sachabowski a Peter Molloy, em “No Mundo Perdido do Comunismo”. Depois da guerra Günter termina o liceu e começa a trabalhar como jornalista no jornal dos sindicatos, “Tribune”. Em 1952, só com dois anos de jornalismo, filiou-se no SED. A sua ascensão foi meteórica. “Quando Estaline morreu, em 1953, todos os jornais da Alemanha Oriental publicaram páginas e páginas emolduradas a negro de obituários e homenagens. Houve uma excepção: chamaram a Estaline ‘Pai da Guerra’ em vez de ‘Pai da Paz’ num dos nossos artigos.”

No dia seguinte a Stasi foi ao jornal e metade da direcção foi corrida. Günter não estava de serviço nessa noite e, por acidente, mais um na sua vida, viu-se promovido a subchefe de redacção com apenas 24 anos de idade. Quando, a 17 de Junho de 1953, os operários de Berlim se revoltaram contra as autoridades e as tropas soviéticas, o dramaturgo e poeta comunista Bertoltd Brecht ironizou com a cegueira ideológica da direcção do partido no seu poema “A solução”: “Após a insurreição de 17 de Junho/O secretário da União dos Escritores/Fez distribuir panfletos na Alameda Estaline/Em que se lia que, por culpa sua,/O povo perdeu a confiança do governo/E só à custa de esforços redobrados/Poderá recuperá-la. Mas não seria/Mais simples para o governo/ Dissolver o povo/E eleger outro?” 

O prometedor burocrata Günter leu a revolta com outros olhos: “Nessa altura considerei que era uma contra-revolução”, confessa a Peter Molloy. O Muro foi construído em 1961, mas isso não abalou nada a sua posição. “Nunca mudei de atitude. Pelo contrário, reforcei as minhas convicções. A construção do ‘muro de protecção antifascista’ justificava-se plenamente aos olhos dos comunistas, como eu, para evitar que o povo se deixasse seduzir pela propaganda ocidental”, relembrou. Em 1968 foi nomeado chefe de redacção do órgão central do SED, “Neues Deutschland”, e no seu gabinete havia um telefone vermelho que ligava directamente ao politburo do partido. Para Schabowski a função do jornalista era muito clara: “Não é escrever sobre a realidade, mas interpretá-la. Ao contrário dos cidadãos comuns, nós sabíamos exactamente o que era necessário para construir uma sociedade melhor”, explicava. O líder do SED, Honecker, intervinha directamente na elaboração do jornal, e foi a convite deste que, em 1983, Günter foi promovido ao politburo do SED. Cumpria o seu papel como o mais alinhado dos alinhados. A escritora Christa Wolf apelidou-o “um dos piores” dirigentes do SED. “Relembro algumas aparições dele na associação de escritores. Metia-nos medo”, garante.

Os processos históricos estão longe de ser a preto--e-branco. A RDA foi construída de idealismos e cinismos. A Guerra Fria prestava-se a enormes ironias. No seu romance “O Saltador de Muros”, que narra a história de um homem que salta repetidamente, para surpresa de todos, da Alemanha Ocidental para a Oriental, Peter Schneider escreve: “Quando o chanceler da Alemanha Ocidental aproveitou a ocasião da emissão de uma série de televisão americana sobre o Holocausto para recomendar ao presidente do conselho de Estado da RDA que a aceitasse, para que deste modo a televisão da RDA também desse o seu contributo para vencer o passado, Robert bateu com tanta força com a mão na mesa que fez um derrame. E isto é recomendado por um ex--oficial da Wehrmacht a um combatente da resistência antifascista que permaneceu dez anos na prisão devido às suas convicções políticas.”

A 2 de Maio de 1989, a Hungria desmantela as suas barreiras na fronteira com o ocidente. Milhares de alemães de Leste começam a fugir por aí. Quando, em Outubro de 1989, o secretário-geral do PCUS, Gorbatchov, visita a RDA, nas comemorações do 40.o aniversário da RDA, o poder já está a perder o pé. O líder soviético diz à direcção do SED: “Aqueles que chegam tarde são castigados pelo história.” Honecker responde secamente: “A RDA não precisa de perestroika, já a fez.” A situação é desesperada. Numa reunião de politburo Honecker é corrido, por proposta de Schabowski, Krenz e Lorenz: Honecker vota a favor da sua própria demissão e Egon Krenz é nomeado líder do SED.

Na história chama-se “nariz de Cleópatra” à importância do acaso no curso dos acontecimentos. Se a rainha do Egipto não tivesse aquela beleza, César e António não se tinham apaixonado por ela… se não o tivessem, a história não teria acontecido da mesma maneira. O Muro e o poder em Berlim Leste estavam condenados. Os tropeções do apparatchik Günter apenas apressaram o inevitável. Passava pouco das sete da tarde do dia 9 de Novembro de 1989, a conferência de imprensa, transmitida pela televisão da RDA, estava a chegar ao fim. Günter Schabowski, membro e porta-voz do politburo do SED, apercebeu-se de que se tinha esquecido de anunciar o “decreto da liberdade de viajar”.

Estava previsto que demoraria uns dias a ser posto em prática mas ninguém o tinha avisado. No meio da sonolência disse: “Tenho a comunicar que o governo aprovou um decreto sobre as normas de viagem. Vou lê-lo.” Fez-se silêncio. Na confusão que se seguiu, os jornalistas pressionaram o porta-voz para saber “quando é que a medida vai acontecer”. “Tanto quanto sei, imediatamente”, respondeu Schabowski. Estava derrubado o Muro.