Birmânia. Aung San Suu Kyi  é a epítome da mudança mas pouco deverá mudar para já

Birmânia. Aung San Suu Kyi é a epítome da mudança mas pouco deverá mudar para já


Liga Nacional para a Democracia terá vencido as primeiras eleições livres e multipartidárias do país em 50 anos.


Mais de 80% dos 30 milhões de eleitores da Birmânia foram ontem às urnas naquelas que foram as primeiras eleições livres e multipartidárias na nação asiática em meio século, depois de 50 anos de ditadura militar. Livres ou nem tanto, considerando as diversas medidas que o actual governo do partido União Solidariedade e Desenvolvimento (USDP), apoiado pelo exército, aprovou para impedir que a histórica líder da oposição e Nobel da Paz Aung San Suu Kyi possa governar.

Líder da Liga Nacional para a Democracia (NLD) que, como previsto, terá vencido as eleições, Suu Kyi passou quase 20 anos em prisão domiciliária e é a eleita de milhões de birmaneses. Mas isso não significa que hoje, no rescaldo das eleições, possa ser líder do novo governo. Até ao fecho desta edição, ainda não havia resultados oficiais nem Suu Kyi tinha quebrado o silêncio.

Entre as várias alterações à Constituição desenhada ao milímetro para satisfazer a Junta Militar, uma das últimas foi tornar ilegal que um cidadão birmanês que tenha filhos de outras nacionalidades – como é o caso da líder da oposição, que tem dois filhos britânicos – possa ser presidente. Entre as outras alterações conta-se o facto de a Junta ter decidido definir que o presidente é o chefe máximo de um país cujo regime não é presidencialista. Tal aconteceu durante a recente transição política – ou prelúdio da verdadeira transição –, quando os militares escolheram o ex-general Thein Sein para presidente.

Thein acabou com a censura à imprensa, libertou alguns dissidentes e encetou reformas económicas, mas com a mesma mão com que deu também tirou, nomeadamente ao ditar que a nomeação dos ministros da Defesa, do Interior e das Fronteiras é feita pelo chefe da Junta e não pelo presidente – e que, para alterar essa alínea da Constituição, é necessário o aval dos poderosos militares que governaram durante 50 anos com mão de ferro.

Futuro Apesar disto, os birmaneses estão inspirados pela histórica ida às urnas e pelo exemplo dado por Suu Kyi ao longo dos anos, muitos dos quais encerrada entre paredes. As eleições de ontem quase coincidiram com o aniversário da libertação da terceira filha de Aung San, tido como o pai da Birmânia moderna, a 13 de Novembro de 2010. Nesse dia, quatro mil birmaneses concentraram-se à porta de sua casa para a verem tornar-se livre. Suu Kyi defendeu então a democracia e a reconciliação nacional, disse-se preparada “para conversar com qualquer um” e declarou que “não guarda ressentimentos de ninguém”. Ontem, enquanto os votos das eleições eram contados, o mesmo número (ou mais) de pessoas voltava a reunir-se em seu apoio, desta vez frente à sede da NLD em Rangun, celebrando a previsível vitória da histórica opositora à ditadura ainda antes de ela ter sido confirmada.

Suu Kyi não guarda ressentimentos, mas perante os obstáculos que foram sendo criados à democracia total que defende, endureceu um pouco o discurso. Na quinta-feira, na recta final da campanha, antes da ida às urnas e também ela antevendo a vitória da NLD, declarou que estará “acima de presidente”, naquele que foi considerado o seu primeiro comentário público assertivo de que pretendia governar independentemente das barreiras legais erguidas com minúcia pelo exército. “Se eu ganhar e a NLD formar governo, eu estarei acima de presidente”, assim ditou, numa “mensagem muito simples” com garantias de que não há nada na Constituição que o impeça.

Na verdade, a Constituição de 2008 impede-o, através de cláusulas como a 58, em que é declarado que o presidente “tem precedência sobre todas as outras pessoas”, e a outra que impede cidadãos com filhos de outra nacionalidade de governarem. Essa mesma Constituição implementou um complexo processo de escolha das estruturas executivas. Quem escolhe o presidente é o parlamento – com a câmara baixa, a câmara alta e os representantes militares com lugar cativo e não eleitos a proporem, cada um, o seu candidato. Quem quer que angarie o maior número de votos numa sessão conjunta entre essas três “câmaras” torna-se presidente, e os outros dois vice-presidentes. A mensagem de Suu Kyi na semana passada está assim ligada ao candidato que escolher para presidente. Antevendo-se que a sua liga vai obter maioria no parlamento, não era ainda conhecido, até ao fecho desta edição, sobre quem recairá a escolha da Nobel.

Com tudo isto, as eleições de ontem, disputadas por mais de 90 partidos – as primeiras desde que a Junta abdicou do poder e se substituiu pelo governo civil pró-militar de Thein em 2011 –, são apenas o primeiro capítulo de um longo caminho para a democracia na Birmânia, onde continua a perseguição aos muçulmanos Rohingya, proibidos de votar. O processo começa hoje.