As notícias vindas da Turquia deixaram de interessar aos lusitanos desde que os cruzados fizeram escala em Portugal e ajudaram, e muito, à conquista de Lisboa, Setúbal, Alcácer do Sal e Alvor. Nos dias que correm, a Turquia é um destino exótico para férias e pouco mais. As notícias vindas de Ancara são sepultadas na segunda parte dos jornais televisivos, pouco antes do futebol.
Perdoar-me-á o leitor a caturrice, mas gostava de assinalar o resultado das eleições legislativas que ocorreram no passado domingo na Turquia. As eleições intercalares resultaram numa retoma da maioria absoluta pelo partido do ex-primeiro-ministro, actual presidente da república, e que se decidiu a convocar eleições depois do menos bom resultado do seu partido no início do Verão. O partido do presidente (e a expressão não é condescendente, já que Erdogan inventou, fundou, desenvolveu e dirige o AKP) obteve 49,5% dos votos e 317 dos 550 deputados – um resultado impressionante mas não suficiente para permitir uma revisão da Constituição, processo que exige dois terços dos deputados. Não obstante, tal resultado, somado aos deputados do partido kemalista (laico e republicano, mas que pode estar disponível para a negociação com os muçulmanos do AKP), permite lançar um referendo constitucional visando a revisão da Constituição.
E o programa de Erdogan para a revisão da Constituição traduz-se num reforço dos poderes do presidente da república, com passagem de um sistema de governo parlamentar para um sistema de governo presidencialista.
Perguntará o leitor amigo, e então? Tendo em conta a incipiente e frágil democracia turca, os atropelos promovidos pelo presidente Erdogan e pelo governo durante a campanha eleitoral, atropelos que incluíram o anúncio prévio pelo presidente e a ocupação pela polícia de dois canais televisivos críticos do AKP, e a campanha de demonização da minoria curda que permitiu a vitória do AKP, tenho as maiores reservas quanto à bondade de um novo sultanato sob a égide de Erdogan.
Os resultados eleitorais, mostrados geograficamente, mostram um partido dividido, com uma franja de maioria do partido kemalista no litoral ocidental da Turquia, uma presença monocolor do AKP em todo o centro da Turquia (muito para lá da Anatólia rural) e uma mancha curda a leste. Este é um país dividido que Erdogan pretende unir com base no ódio aos curdos e no perigo de secessão, com a possibilidade de criação de um Curdistão independente transnacional agrupando território turco, sírio e iraquiano (e aqui com o bónus do petróleo). Não me parece que os curdos se deixem transformar em alvo de um ressuscitar do orgulho otomano sem defenderem, pela força das armas, o ideal de um estado curdo. Do lado turco está assegurado o fluxo contínuo de refugiados sírios em direcção à União Europeia, com tudo o que tal significa de trunfo negocial para Erdogan.
De caminho será preciso garantir a manutenção do crescimento económico, que permite ao AKP mostrar obra feita, e aumento do rendimento junto das populações rurais da Anatólia e dos desfavorecidos nas grandes cidades. Enquanto tal continuar a acontecer, Erdogan terá margem para contentar o seu eleitorado. Se tal deixar de acontecer, corre-se o risco de o governo recorrer a métodos ainda mais ínvios para justificar a sua subsistência. A demonização dos curdos corre o risco de vir a conhecer formas ainda menos agradáveis e com consequências extremas para uma região que está paredes- -meias com o Médio Oriente e inclui um aliado que é membro da NATO.
Escreve à sexta-feira