Percebemos, na passada semana, que são muitos os perigos práticos que acarreta a utilização “a gosto” da escuta telefónica. Mas como todos sabemos, o sal usado “a gosto” também pode causar hipertensão. Ficaram por ver os perigos dogmáticos deste meio de obtenção de prova. Algo que parece andar totalmente arredado das reflexões de bom senso nos tempos que correm.
Se com a parte A da crónica o leitor levantou o sobrolho ao fim de um parágrafo, hoje terá os dois levantados. Mas creia-me, leitor: há pior por recordar!
É que uma escuta telefónica ou a intercepção de um SMS ou de um email não são só uma invasão da privacidade, da intimidade. São uma verdadeira insídia, porque meio de prova obtido à socapa, à traição. E acabam por autorizar um verdadeiro voyeurismo judiciário, pois além de darem acesso ao que deve ser investigado, permitem aceder a tudo o mais da vida dos investigados e de todos quantos com eles contactarem durante o período da escuta.
Num cenário destes, ninguém com bom senso falaria ao telefone fosse com quem fosse… não vá o diabo tecê–las, e ainda se arrisca a dizer algo a que, sendo na realidade totalmente sem sentido, venha a ser dada relevância séria, por total incompreensão do verdadeiro sentido do afirmado ou por desconhecimento das personalidades dos escutados. E depois de formada a convicção na investigação, amplamente difundida na imprensa e por todos nós julgada, espere o leitor que um tribunal consiga perceber o contrário… espere e verá o que acontece.
Mas ainda há pior… é que usar escutas telefónicas é pegar no arguido para fazer prova contra si próprio. Claro que, por regra, antes de ser arguido, embora também haja casos em que se constituem arguidos precisamente para, em seguida, se porem sob escuta e ver qual a reacção, numa actuação que raia a utilização do agente provocador.
Em suma, tudo aquilo que não pode deixar de ser uma objectiva e material violação, excepcional mas convolada, em regra, por força da amplitude da lei, do princípio geral de que ninguém pode ser obrigado a auto- -incriminar-se.
Sendo declarações do arguido, a escuta feita às ocultas acaba por ter mais “força” do que a sua confissão pessoal em julgamento, posto que além claramente que os tribunais entenderão existir espontaneidade, enquanto aqui…
Pior ainda: como os tribunais de julgamento tantas vezes optam por, em vez de investigar a verdade “de raiz”, fazer do julgamento um exercício de confirmação da narrativa plasmada na acusação, qualquer pedaço de prova, mesmo que desgarrado do contexto, serve com facilidade para respaldar a narrativa, que na globalidade até pode ser incoerente, ou não ser na verdade “provável” (susceptível de ser provada) por aquela afirmação ao telefone ou texto de SMS.
Por fim, parece que nos esquecemos da regra-base: “Só podem ser autorizadas (…) se houver razões para crer que a diligência é indispensável (…) ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter.” É para estes casos. Apenas estes!
Apesar de tudo isto, a prova-rainha, hoje em dia, já não é a confissão, mas a escuta telefónica. Daí a tornar-se a “prova única”, ou a prova contra todas as outras, vai um saltinho!
Advogado. Escreve à sexta-feira
1Tomo de empréstimo o título de M. Terestchenko, “Du bon usage de la torture”, Cahiers Libres, 2008.