Segredos de Estado. Jornalistas podem ser julgados e condenados no Vaticano

Segredos de Estado. Jornalistas podem ser julgados e condenados no Vaticano


Santa Sé pode enviar carta rogatória à justiça italiana se os livros de Gianluigi Nuzzi e de Emiliano Fittipaldi, lançados amanhã, violarem segredos de Estado. Porta-voz do Vaticano já admitiu essa possibilidade.


Vallejo Balda e Francesca Chaouqui são suspeitos de “subtracção e divulgação de notícias e documentos reservados”, crime previsto no artigo 10 da lei número IX do Estado do Vaticano e com uma moldura penal que pode chegar aos oito anos de cadeia. A Gendarmeria continua a investigar os contornos da fuga de informação e antes do julgamento terá de ser deduzida uma acusação por um promotor de Justiça do Vaticano. 

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Os dois jornalistas italianos que publicaram em livro os documentos e as informações alegadamente vazados por Vallejo Balda e Chaouqui poderão ser chamados ao Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano. O porta-voz da Santa Sé admitiu que não está descartada a hipótese de o promotor de Justiça – o equivalente ao Ministério Público no direito português – tomar “medidas ulteriores”, incluindo o envio de uma carta rogatória internacional à justiça italiana. Isto porque Gianluigi Nuzzi e Emiliano Fittipaldi, sublinhou Federico Lombardi, são parte de “uma operação para obter vantagens de um acto gravemente ilícito de entrega de documentação reservada” da Santa Sé.

Através da rogatória, o Vaticano poderá tentar interrogar os dois jornalistas, e em teoria Nuzzi e Fittipaldi podem mesmo ser acusados à luz do direito penal civil do Vaticano. O artigo 6 é claro: os estrangeiros que cometerem, mesmo que em território estrangeiro, um “delito contra o Estado [Santa Sé] ou contra um cidadão pelo qual a lei vaticana estabelece pena de prisão não inferior a um mínimo de três anos” são punidos “segundo a mesmo a lei a pedido da Secretaria de Estado”.
Ou seja, os dois jornalistas podem ser condenados por publicar livros contendo segredos de Estado do Vaticano. Porém, de acordo com canonistas consultados pelo i, é pouco provável que isso venha a acontecer porque o delito de que poderão ser acusados –  a “divulgação de notícias e documentos reservados” da Santa Sé – tem, para cidadãos estrangeiros, uma pena de cadeia inferior a três anos. Assim, dificilmente haverá cartas rogatórias entre o Vaticano e a justiça italiana. 

o mordomo Entretanto, Vallejo Balda deverá continuar detido a aguardar o julgamento, enquanto Francesca espera em liberdade porque, segundo um comunicado da Santa Sé, se comprometeu a “colaborar com a investigação”. O monsenhor espanhol ocupa, desde sexta-feira à noite, a mesma cela que há três anos albergou o mordomo de Bento XVI, condenado a um ano e meio de cadeia também por ter divulgado documentos confidenciais – dando origem ao escândalo Vatileaks, que fragilizou o pontificado do Papa alemão e que alguns observadores acreditam ter contribuído para a demissão de Ratzinger, inédita na história moderna da Igreja Católica.  

Apesar de o crime ser o mesmo, existem diferenças substanciais entre os processos de Paolo Gabriele e de Vallejo Balda. É que a divulgação de documentos reservados só faz parte do Código Penal (CP) do Vaticano desde 2013. A alteração – que tipificou o crime e estabeleceu a respectiva moldura penal –  foi feita pelo Papa Francisco e é das poucas mudanças introduzidas ao CP do Vaticano, que recua a 1886. Por os factos cometidos pelo mordomo serem anteriores à revisão da lei, estavam ainda abrangidos pelo CP anterior e o Vaticano foi obrigado a encaixar o delito de Paolo Gabriele noutro tipo de crime: abuso de confiança.

jurar segredo Existe ainda outra diferença entre os dois casos. Vallejo Balda arrisca uma pena maior que a do mordomo de Bento XVI, porque o cargo que ocupava na comissão que o Papa Francisco criou em 2013 para avaliar o estado das finanças da Santa Sé implicava um juramento de segredo, enquanto as funções de Paolo Gabriele não. Quando Francesca Chaouqui e o monsenhor espanhol foram con-tratados pelo Papa, aceitaram e prometeram preservar o segredo de Estado – o que agrava o delito e a respectiva pena.