Peter Kuznick. “Os EUA têm inúmeros horrores pelos quais prestar contas”

Peter Kuznick. “Os EUA têm inúmeros horrores pelos quais prestar contas”


Co-autor, com o realizador Oliver Stone, de “A História não Contada dos Estados Unidos”, o historiador garante amar o seu país e querer vê-lo a desempenhar um papel positivo.


Alguns são episódios tristemente célebres – como o lançamento das bombas de Hiroxima e Nagasáqui, a Guerra do Vietname ou a invasão do Iraque em 2003. Outros são factos menos conhecidos, mas igualmente ignominiosos – manobras de bastidores para depor chefes de Estado, alianças com figuras duvidosas, guerras movidas por interesses puramente económicos.

O professor de História Peter Kuznick e o realizador OliverStone assinam “A História não Contada dos Estados Unidos”, que retrata a face negra da grande potência do nosso tempo. O i entrevistou Kuznick por email.

Há quanto tempo conhece Oliver Stone? Pode descrever as circunstâncias do primeiro encontro?
Conhecemo-nos em 1996. Eu dava uma cadeira de História chamada “A América de Oliver Stone” e um dia ele participou como orador convidado. A seguir fomos jantar e ficámos desde então amigos chegados. Até escrevi o guião para um filme dele sobre o início da Guerra Fria, que nunca chegou a ser feito.

Como escreveram este livro? Foi um processo conjunto ou repartiram tarefas?
Escrevemos o livro ao mesmo tempo que estávamos a escrever e a produzir a série de TV. Mas há três anos que andávamos a trabalhar em documentários e já tínhamos esboços de todos os episódios. Portanto tomámos a decisão de, enquanto o Oliver trabalhava sobretudo nos documentários, eu me centraria no livro. Mas ambos tínhamos as mãos na massa e trocámos esboços e sugestões até ao final. Foi uma colaboração e peras.

Quando se apercebeu de que a História da América não era exactamente como lha tinham contado e deveria ser escrita a uma nova luz?
Comecei a perceber isso no liceu e, já no final do liceu, tornei-me activista dos direitos civis. Mas isso tornou-se ainda mais evidente durante a Guerra do Vietname, que foi cuidadosamente embrulhada em mentiras patrióticas. Isso levou-me a olhar de uma forma mais profunda para a política externa americana, que mostrava muito claramente que o Vietname não era uma aberração na história. Era o culminar de sete séculos de agressão imperialista.

Ao contrário da Rússia de Estaline, da Alemanha de Hitler ou da China de Mao, os Estados Unidos da América não têm no seu cadastro episódios como o gulag, os campos de concentração nazis ou os horrores cometidos pelo regime maoista. Não acha que isso faz dos EUA um “polícia do mundo” mais recomendável que qualquer outra potência?
Está a esquecer-se do genocídio contra os nativos americanos ou de séculos de escravatura? Os Estados Unidos têm inúmeros horrores pelos quais prestar contas. Que outro país interveio repetidamente no estrangeiro, bombardeou, entrou em guerra com outras nações da mesma forma que os Estados Unidos? Martin Luther King disse que os Estados Unidos eram “o maior distribuidor de violência do mundo”. Isto continua a ser verdade nos dias de hoje. Quem mais invade outros países com absoluta impunidade? Quem mais mantém um império de 800-1000 bases no estrangeiro?

Mas não acha que podemos estar mais descansados enquanto forem os EUA a desempenhar esse papel de polícia do que se fosse a China, a Rússia ou um país islâmico?
Acho que nenhum país deve desempenhar esse papel. Foi para isso que se criaram as Nações Unidas. AGuerra Fria interrompeu os planos para umas Nações Unidas com significado, mas talvez a cooperação entre os EUAe a Rússia no Irão e na Síria permita reatar esses planos. Lembre-se que foi Franklin Delano Roosevelt em 1942 que apresentou a visão dos “quatro polícias” – EUA, União Soviética, China e Grã-Bretanha – para assegurar a paz e a segurança. Os EUAautonomearam-se “polícias do mundo” e agora é a China que parece querer replicar esse comportamento. Se for esse o caso, o próximo século vai ser sombrio.

Qual é, em sua opinião, o episódio mais negro da história americana? O bombardeamento de Nagasáqui?
Os Estados Unidos nunca poderão limpar as manchas da escravatura e do genocídio dos indígenas. O antigo secretário da Defesa Robert McNamara disse aos meus alunos que só na invasão americana do Vietname morreram 3,8 milhões de pessoas. Mas há de facto algo de imperdoável nos bombardeamentos atómicos de Hiroxima e Nagasáqui. Truman bombardeou essas cidades mesmo não havendo qualquer justificação militar – e ele sabia-o! E ao fazê-lo, conscientemente, deu início a um processo que poderia ter aniquilado a vida no nosso planeta. Esse é o maior crime contra a humanidade e contra todos os seres vivos. Temos sorte por ter sobrevivido até aqui, mas não há garantias em relação ao futuro. 

Permita-me recorrer a uma metáfora: se olhamos com atenção para a areia da praia, vemos que é composta também por grãos pretos e, se seleccionarmos apenas os grãos pretos, poderemos chegar ao fim e usar essa amostra para convencer alguém de que a areia é preta. Mas a areia, como sabemos, não é preta. Acha que esta metáfora – pegar apenas nos episódios negros da história americana – se pode aplicar ao vosso livro?
Não. Os Estados Unidos estão cobertos de mentiras patrióticas e de livros de história higienizados que falam da grandeza americana. Nós reconhecemos que os EUA também fizeram coisas boas e referimos algumas delas no livro. Falamos sobre os grandes americanos que queriam levar o país para um caminho de paz e justiça social – homens como Franklin Delano Roosevelt, Henry Wallace e John F. Kennedy. Mas também dizemos onde os Estados Unidos erraram. Fazemos isto não por odiarmos a América, mas sim por porque a amamos e queremos vê-la desempenhar o papel positivo de que é capaz. Se se não compreendermos os erros do passado, estamos condenados a repeti-los no futuro. É isso que me assusta na Hillary Clinton. Ela apoiou as desastrosas invasões do Afeganistão, do Iraque e da Líbia. Forçou Obama a bombardear a Síria – é um falcão [alguém que defende uma política externa agressiva]. Poderá mudar? Espero bem que sim, mas não apostaria nisso o futuro da humanidade.

Segundo o ex-espião do KGB John Barron, o movimento pacifista durante a Guerra Fria foi financiado pela União Soviética (enquanto ela própria se armava até aos dentes) para denegrir os EUA. Como pacifista convicto, tem noção disso?
Nunca li o livro de Barron, mas os presidentes Johnson e Nixon tentaram desesperadamente encontrar comunistas por detrás do movimento antiguerra e saíram de mãos vazias. Ambos os lados tinham em curso operações de espionagem no outro país. A propaganda soviética apoiava os movimentos pela paz, mas nunca teve um papel significativo no seu desenvolvimento. 

A personagem de Jeff Daniels na série “The Newsroom” profere um discurso em que diz que “a América já não é o maior país do mundo”. Concorda com esta afirmação? Qual é, no seu entender, “o maior país do mundo”?
É um grande discurso, costumo mostrá–lo aos meus alunos. Está em sintonia com a nossa “História não Contada”. Mas não creio que possa escolher um país que seja o maior do mundo. Os Estados Unidos fizeram coisas fantásticas na Segunda Guerra Mundial, mas também fizeram coisas terríveis. Há imensos aspectos dos países escandinavos que me agradam. E há muitas coisas na União Soviética que odeio, como a repressão interna ou o conceito completamente desacreditado de socialismo democrático. 

No vosso livro criticam vários presidentes (Wilson, Truman, Obama…). Qual foi na sua opinião o pior presidente americano? E o melhor?
O pior teria de ser Truman – não por ser uma pessoa diabólica, mas por causa das consequências da sua política, que quase atirou o mundo para a aniquilação nuclear. Eisenhower aumentou o arsenal nuclear americano de pouco mais de mil armas nucleares para mais de 22 mil quando a sua presidência terminou. E George W. Bush estaria entre os piores. Em relação aos melhores, diria que o melhor presidente foi Franklin Roosevelt, embora John Kennedy estivesse a caminho de se lhe juntar no último ano do mandato, a seguir à crise dos mísseis de Cuba.

Um dos crimes apontados aos EUA diz respeito ao tratamento de suspeitos de terrorismo. Acredita que seria possível combater de forma eficaz este flagelo sem limitar as liberdades dos detidos?
Os terroristas merecem ver a sua liberdade limitada, mas têm certos direitos segundo a Convenção de Genebra, que têm de ser respeitados. Alguns membros da administração Bush mereciam estar no porto de Haia [sede do Tribunal Penal Internacional, que julga crimes de guerra] por causa da sua política de rapto e tortura no Iraque.

Há dias Tony Blair veio reconhecer erros na invasão do Iraque. É verdade que os ataques se basearam no testemunho de um alcoólico e mentiroso compulsivo conhecido pelo nome de código “Curveball”?
Os alemães avisaram os EUA acerca de Curveball, mas os EUA preferiram não acreditar, ao mesmo tempo que os responsáveis da administração faziam tudo para distorcer e forjar as informações secretas para conseguirem os resultados pretendidos enquanto punham o país a marchar para uma guerra ilegal. Mas o ataque baseou-se, na verdade, nos esforços de outro mentiroso compulsivo, chamado Dick Cheney. Ele tinha o apoio de um antigo alcoólico e ignorante compulsivo chamado George W. Bush e de malfeitores como Wolfowitz e Perle. 

Mikhail Gorbachov disse que o vosso livro é “indispensável”. Como reage a este elogio de um dos mais importantes políticos da segunda metade do século XX?
Fiquei muito orgulhoso. Ele é um dos nossos heróis – um dos maiores políticos do século passado. O Oliver encontrou-se com ele várias vezes. Espero também poder conhecê-lo na minha próxima visita a Moscovo, daqui a um par de meses.
 

Peter Kuznick
Pacifista e crítico feroz da proliferação nuclear, Peter Kuznick é professor de História na American University. Conheceu Oliver Stone em 1996.

Oliver Stone
Voluntariou-se para combater no Vietname aos 21 anos. Foi ferido duas vezes e ganhou uma medalha por heroísmo. Baseou-se na sua experiência para realizar “Platoon – Os Bravos do Pelotão” (1986), pelo qual ganhou um Óscar. Comunista assumido, é amigo de Fidel Castro, Mikhail Gorbachov e Hugo Chávez (a quem dedicou um filme).