Negligência médica. Punir é uma missão quase impossível na justiça portuguesa

Negligência médica. Punir é uma missão quase impossível na justiça portuguesa


Demonstrar em tribunal que um médico se enganou é difícil. A linguagem técnica, a morosidade e o custo dos processos e a subjectividade da medicina explicam o número reduzido de condenações.


A. esteve internada 43 dias nos cuidados intensivos, com os órgãos vitais a entrar em falência e ligada a um ventilador. Quando teve alta só conseguia mexer a cabeça e as mãos, precisou de andar de cadeira de rodas e perdeu a autonomia durante meio ano. Tudo por causa de um exame de rotina – uma colonoscopia – que correu mal. O médico perfurou-lhe o intestino com o aparelho e só foi condenado 12 anos mais tarde e depois de uma batalha judicial que se arrastou até ao Supremo Tribunal. 

Os pais de M., que também conseguiram vencer o hospital e os médicos na justiça, tiveram de aguardar 11 anos. E de provar aos juízes que se soubessem que o filho ia nascer deficiente teriam optado por interromper a gravidez. M. nasceu com uma deficiência do lado esquerdo do corpo e ninguém deu conta, nas ecografias, de que alguma coisa não estava bem. O caso de B. também foi demorado: foram precisos 12 anos para que o tribunal condenasse o cirurgião plástico que decidiu fazer-lhe uma operação que não tinha pedido e que não era urgente. Já o processo de J. acabou por ser decidido em menos tempo: os tribunais demoraram quatro anos a condenar a médica que lhe tirou a próstata a seguir ao diagnóstico de um cancro que afinal nunca tinha existido.

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Nos quatro casos, os doentes tiveram de enfrentar sentenças que começaram por dar razão aos médicos, de recorrer até ao Supremo Tribunal da Justiça e de lidar com a morosidade e as custas dos processos. No final, conseguiram que a justiça lhes desses razão. Um desfecho que, admite André Dias Pereira, advogado especializado na área da responsabilidade médica, continua a não ser comum nos tribunais portugueses: os casos de médicos condenados são raros. “É muito difícil os pacientes ganharem em tribunal. E mesmo que o erro seja grosseiro e muito evidente o mais comum é as duas partes acabarem por chegar a acordo”, explica o advogado. 

Quando a negligência ou o erro são gritantes e evidentes – e sobretudo no sector privado –, os médicos e as clínicas preferem pagar as indemnizações, evitando a via judicial e accionando os seguros de responsabilidade civil. Uma estratégia muito utilizada e que visa proteger a reputação dos profissionais e dos hospitais – porque ir para tribunal acarreta sempre o risco de o caso se tornar público.

Mas se esta é a via mais seguida pelos hospitais privados, os públicos reagem de outra maneira: raramente chegam a acordo e preferem enfrentar os julgamentos. “Para evitar problemas com o Tribunal de Contas”, justifica André Dias Pereira. É que chegar a acordo com os doentes lesados implica pagar indemnizações, que não estão orçamentadas e precisam de ser justificadas, uma vez que se trata da gestão de dinheiros públicos.

difícil fazer prova Seja num hospital público seja num privado, é sempre difícil demonstrar que o médico errou ou foi negligente. Desde logo, porque é “extremamente complicado” provar que o procedimento adoptado não foi o correcto. “A medicina encerra um alto grau de imprevisibilidade e o médico só é condenado se não tiver comprovadamente seguido as regras da arte”, explica o advogado. E num julgamento há pormenores que acabam por fazer toda a diferença. No caso de A., por exemplo, a defesa do médico que lhe perfurou o intestino durante a colonoscopia invocou que qualquer exame do género acarreta riscos – invalidando assim a tese de que o médico cometeu um erro ou foi negligente. 

Por outro lado, a área médica é especialmente técnica e complexa, o que dificulta a decisão dos juízes. Todos os processos judiciais implicam a participação de peritos – que são chamados ao tribunal para explicar se os procedimentos adoptados no caso em julgamento foram ou não os correctos. E estes peritos também são médicos – o que por vezes levanta dúvidas junto dos pacientes sobre a isenção da avaliação que apresentam aos juízes. André Dias Pereira rejeita, no entanto, a ideia de que exista um lóbi e que os médicos se protejam uns aos outros. “A proximidade entre os médicos que estão a ser julgados e os peritos não existe da maneira que por vezes se imagina”, garante. De qualquer forma, os juízes tendem a ser cautelosos a condenar os profissionais de saúde. “Por terem consciência da dificuldade e da complexidade técnica que envolve os casos da medicina e por existirem dificuldades em compreender a linguagem médica”, admite.

Outra especificidade dos casos judiciais que envolvem a responsabilidade médica é a morosidade dos processos, que é maior que noutras áreas. Uma fonte judicial adiantou ao i que nos tribunais administrativos de Lisboa e de Sintra os juízes estão a demorar cerca de cinco anos só até lerem os processos. E nos tribunais cíveis os casos arrastam-se em média oito anos até chegarem ao Supremo Tribunal. Só na primeira instância, a demora é de cerca de dois anos. A falta de juízes é apontada como a principal causa da demora processual, embora os casos médicos encerrem especificidades que também causam atrasos: é preciso esperar pelas perícias, pelos relatórios dos conselhos médico-legais, ouvir testemunhas. E o próprio sistema não é favorável à agilização processual: um doente que tenha tido um problema numa clínica privada terá de intentar a acção num tribunal cível, enquanto os erros cometidos no Serviço Nacional de Saúde (SNS) são discutidos nos tribunais administrativos. “E há processos que sofrem atrasos porque dão entrada no tribunal errado”, conta André Dias Pereira.

doentes queixam-se mais Mesmo assim, há cada vez mais doentes a recorrer aos tribunais quando se sentem lesados por um médico ou um hospital. As áreas em que há maior litigância são a ortopedia, a cirurgia geral e a obstetrícia. “No fundo são as áreas em que, se alguma coisa corre menos bem, as consequências são mais evidentes. O erro vê-se”, explica o advogado. Independentemente da área médica que esteja em causa, as queixas estão a aumentar, culpa de uma mudança de mentalidade generalizada em relação aos serviços de saúde. “Os pacientes deixaram de se resignar e de encarar um incidente numa operação ou num exame como uma fatalidade. Há uns anos não existia a noção de que o utente tem direitos e pode exigir explicações e informações sobre todos os procedimentos”, confirma o director da Best Medical Opinion, empresa criada em 2010 e que se dedica à produção de pareceres médicos e segundas opiniões. 

A procura deste tipo de serviços – muitas vezes por advogados que querem averiguar se um determinado caso tem hipóteses em tribunal – também tem subido. Mas Pedro Meira e Cruz sublinha que, se os doentes estão cada vez mais cientes dos seus direitos e mais exigentes, os hospitais ainda têm um longo caminho pela frente. É que muitas vezes quem pretende avançar para um processo judicial esbarra logo no início numa dificuldade básica: as instituições não facultam os processos clínicos aos doentes e quando o fazem a documentação está incompleta. “Já tivemos casos de pessoas que estiveram internadas várias semanas e em que faltam nos processos clínicos informações de vários dias, como se os doentes não tivessem estado no hospital”, conta o director da empresa. 

A dificuldade de aceder às histórias clínicas acaba por empatar também os processos nos tribunais. No caso dos hospitais públicos, o acesso à informação melhorou nos últimos anos, mas nos privados continua a ser difícil. “Porque há o entendimento, suportado pela lei e pelas regras da protecção de dados, de que o acesso só deve ser feito através de um médico e não pelo próprio utente”, explica Pedro Meira e Cruz. Já os hospitais públicos obedecem à Lei de Acesso aos Documentos Administrativos, que permite a consulta directa pelos doentes da sua informação clínica.
Uma vez reunidos os processos, a maioria dos casos que chegam à empresa – e depois de feita a avaliação dos peritos e emitidos os pareceres necessários – acabam, no entanto, por ser resolvidos extrajudicialmente. Muitos por não terem fundamento para avançar e, noutros casos, por os doentes não conseguirem suportar as despesas judiciais que se seguem. “Existe o apoio judiciário, mas só abrange quem tem rendimentos realmente muito baixos. A classe média tem muita dificuldade em aceder à justiça”, confirma o advogado André Dias Pereira. 

os direitos dos doentes Hoje é quase senso comum que o direito à protecção da saúde está consagrado na Constituição, e que, seja num hospital público seja numa instituição privada, os pacientes têm direitos. Como o direito de recusar um tratamento, de procurar uma segunda opinião médica, de aceder ao seu processo clínico – e fotocopiá-lo –, de questionar o médico, propor alternativas aos tratamentos sugeridos e ser informado sobre os riscos associados a qualquer intervenção ou procedimento médico a que seja sujeito.

E a justiça parece estar a acompanhar esta mudança. Em Junho deste ano, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu uma decisão histórica em Portugal. Pela primeira vez um médico foi condenado por violar o consentimento informado de uma doente. B. (ver coluna lateral) contratou um cirurgião plástico para corrigir cicatrizes e subir a pele dos lábios vulvulares – que se viam quando vestia fato-de-banho devido a uma operação que tinha feito alguns anos antes. Mas o médico decidiu, no meio da cirurgia, fazer-lhe uma vulvopatia – enchimento dos grandes lábios –, uma possibilidade que, argumentou B. em tribunal, nunca tinham discutido antes. A operação correu mal – a doente sofreu uma série de complicações – e o médico ainda tentou escudar-se na autorização escrita que B. tinha assinado antes da operação, dando-lhe autorização, e aos seus assistentes, para “fazerem tudo o que for necessário, incluindo operações ou procedimentos diferentes discriminados, na eventualidade da ocorrência de complicações”. Porém, os juízes do Supremo concluíram que o cirurgião partiu para a operação sem que tenha havido uma complicação que o justificasse e determinaram que este tipo de autorização escrita só é válido em caso de risco de vida ou para “protecção da saúde” da doente.