Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos*


Para quem fica há algo de milenariamente misterioso e ameaçador num viajante, por isso tenho uma certa ânsia por abrir a mala de viagem.


Não parto em Erasmus, com bolsa de mestrado ou por ter na mão uma melhor oferta de trabalho. Parto porque não encontro trabalho na minha cidade, e faço-o com uma certa urgência, uma certa falta de dinheiro. Inconsciente de planos B. Existe uma tendência para a vulnerabilidade quando se está emigrante. Ficamos mais à mercê dos outros. No meu caso estou sobretudo exposto às minhas escolhas e ambições.

A cada decisão tomada dissipa-se um pouco mais o nevoeiro que esconde essa Terra Incognita de quem sou eu. Quando se parte jovem é com o nosso ego que se dá o maior confronto. E neste momento é isso que transporto, ego e uma mala que se torna símbolo de intermitência existencial, tudo o que tenho reduzido aos 55x45x25cm impostos por uma low cost qualquer. Faz de armário e de tatuagem. Uma tatuagem que diz a todos que por agora não sou Abel, sou Caim. Sou aquele que partiu. Não sou sedentário, sou nómada. Estou em movimento. Como um vendedor de feira, um artista de circo, um músico em digressão, um refugiado em trânsito.

A história é feita da inegável e permanente deslocação de seres humanos, mas para quem fica há algo de milenariamente misterioso e ameaçador num viajante, por isso tenho uma certa ânsia por abrir a mala de viagem; é preciso fazer como a maioria, meter a roupa no armário e a mala debaixo da cama o quanto antes.

O primeiro sitio onde fico é a residência de estudantes de uma universidade onde um amigo estudava e vivia, e é ele que arranja uma forma engenhosamente cómica e desnecessariamente complicada para eu poder lá dormir, entrar e sair sem o segurança nocturno perceber. Fico lá tanto tempo que a certa altura o segurança já me reconhece, pensa que sou estudante e passo a entrar com honras de porta da frente.

Os outros estudantes começam a perguntar como me correm os exames, chego a fazer turnos na portaria e a entregar o correio. Mas o ano lectivo está a chegar ao fim, o meu amigo torna a Lisboa e eu arranjo um quarto em Putney na chamada Zona 2 por 220 libras por mês numa casa que me assenta como uma luva, um oásis familiar e decadente no meio da ostentação contida da classe média londrina.

O meu senhorio, um irlandês que cresceu em bondi beach na Austrália e só estava em Londres para lutar pela custódia dos filhos diz-me, só pagas a renda quando arranjares trabalho. Passadas umas semanas também diz onde está o cão? viste o cão? Nós não tínhamos cão. Felizmente apenas na segunda vez que me falou estava sob efeitos alucinogénicos, talvez obtidos através dos cogumelos que brotam abundantemente das paredes da casa de banho.

Todos os dias envio o currículo para pelo menos uma produtora de televisão mas enquanto um trabalho na minha área não surge, tenho de encontrar trabalho imediato para pagar as contas e não esgotar o pé-de-meia que desaparece vorazmente. Resolvo procurar perto de minha casa, não percebo porque razão imensa gente vai à procura de trabalho para o centro da cidade tendo de passar o dia em transportes e a comer fora, uma perda de tempo e dinheiro.

O primeiro sitio que tento é um restaurante coreano, dão-me o menu para levar para casa e se no final do dia o souber todo de cor, contratam-me como empregado de mesa. Não passei das entradas. Depois de mais duas ou três tentativas, tento o Nando's, uma cadeia de restaurantes que serve frango no churrasco e se faz passar por comida tipicamente portuguesa. Como sou português e tenho os dentes todos passo a receber os clientes à porta com um sorriso e a levantar pratos das mesas. É este o meu trabalho. E por isto e em part-time recebo mais que o ordenado mínimo em Portugal. Por isto, fora as despesas fixas, restam-me 33 libras por mês.

Não vou ao cinema, não compro livros, não saio. O meu luxo é comprar o jornal todos os dias por uma libra. Depois começo a perceber que basta fintar a cancela e apanhar um comboio numa direcção rica como Richmond, Barnes ou Twickenham e consigo sempre ficar com uma selecção de jornais esquecidos. Com os jornais vou para o parque mais próximo e passo a manhã ou a tarde inteira beneficiando de um dos melhores verões que aquela ilha alguma vez viu. Deito-me na relva, tonto de tanto verde e habituo-me lentamente a estas praias com corvos, campos de ténis e sem mar.

Durante o grande surto de gripe das aves, todos os dias almoço ou janto um frango à borla no Nando's. E há vezes em que ambas as refeições são de lá, generosidades sem o patrão ver de quem trabalha na cozinha e eu ajudo a aprender inglês. Em Inglaterra a H5N1 matou um papagaio.

Filho, está tudo bem por aí? Sim mãe, podes mandar mais dinheiro? Filho, o teu dinheiro já acabou.

*"Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice, foi a época da fé, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação das trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós. " História de Duas Cidades (1859), de Charles Dickens 

 

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos*


Para quem fica há algo de milenariamente misterioso e ameaçador num viajante, por isso tenho uma certa ânsia por abrir a mala de viagem.


Não parto em Erasmus, com bolsa de mestrado ou por ter na mão uma melhor oferta de trabalho. Parto porque não encontro trabalho na minha cidade, e faço-o com uma certa urgência, uma certa falta de dinheiro. Inconsciente de planos B. Existe uma tendência para a vulnerabilidade quando se está emigrante. Ficamos mais à mercê dos outros. No meu caso estou sobretudo exposto às minhas escolhas e ambições.

A cada decisão tomada dissipa-se um pouco mais o nevoeiro que esconde essa Terra Incognita de quem sou eu. Quando se parte jovem é com o nosso ego que se dá o maior confronto. E neste momento é isso que transporto, ego e uma mala que se torna símbolo de intermitência existencial, tudo o que tenho reduzido aos 55x45x25cm impostos por uma low cost qualquer. Faz de armário e de tatuagem. Uma tatuagem que diz a todos que por agora não sou Abel, sou Caim. Sou aquele que partiu. Não sou sedentário, sou nómada. Estou em movimento. Como um vendedor de feira, um artista de circo, um músico em digressão, um refugiado em trânsito.

A história é feita da inegável e permanente deslocação de seres humanos, mas para quem fica há algo de milenariamente misterioso e ameaçador num viajante, por isso tenho uma certa ânsia por abrir a mala de viagem; é preciso fazer como a maioria, meter a roupa no armário e a mala debaixo da cama o quanto antes.

O primeiro sitio onde fico é a residência de estudantes de uma universidade onde um amigo estudava e vivia, e é ele que arranja uma forma engenhosamente cómica e desnecessariamente complicada para eu poder lá dormir, entrar e sair sem o segurança nocturno perceber. Fico lá tanto tempo que a certa altura o segurança já me reconhece, pensa que sou estudante e passo a entrar com honras de porta da frente.

Os outros estudantes começam a perguntar como me correm os exames, chego a fazer turnos na portaria e a entregar o correio. Mas o ano lectivo está a chegar ao fim, o meu amigo torna a Lisboa e eu arranjo um quarto em Putney na chamada Zona 2 por 220 libras por mês numa casa que me assenta como uma luva, um oásis familiar e decadente no meio da ostentação contida da classe média londrina.

O meu senhorio, um irlandês que cresceu em bondi beach na Austrália e só estava em Londres para lutar pela custódia dos filhos diz-me, só pagas a renda quando arranjares trabalho. Passadas umas semanas também diz onde está o cão? viste o cão? Nós não tínhamos cão. Felizmente apenas na segunda vez que me falou estava sob efeitos alucinogénicos, talvez obtidos através dos cogumelos que brotam abundantemente das paredes da casa de banho.

Todos os dias envio o currículo para pelo menos uma produtora de televisão mas enquanto um trabalho na minha área não surge, tenho de encontrar trabalho imediato para pagar as contas e não esgotar o pé-de-meia que desaparece vorazmente. Resolvo procurar perto de minha casa, não percebo porque razão imensa gente vai à procura de trabalho para o centro da cidade tendo de passar o dia em transportes e a comer fora, uma perda de tempo e dinheiro.

O primeiro sitio que tento é um restaurante coreano, dão-me o menu para levar para casa e se no final do dia o souber todo de cor, contratam-me como empregado de mesa. Não passei das entradas. Depois de mais duas ou três tentativas, tento o Nando's, uma cadeia de restaurantes que serve frango no churrasco e se faz passar por comida tipicamente portuguesa. Como sou português e tenho os dentes todos passo a receber os clientes à porta com um sorriso e a levantar pratos das mesas. É este o meu trabalho. E por isto e em part-time recebo mais que o ordenado mínimo em Portugal. Por isto, fora as despesas fixas, restam-me 33 libras por mês.

Não vou ao cinema, não compro livros, não saio. O meu luxo é comprar o jornal todos os dias por uma libra. Depois começo a perceber que basta fintar a cancela e apanhar um comboio numa direcção rica como Richmond, Barnes ou Twickenham e consigo sempre ficar com uma selecção de jornais esquecidos. Com os jornais vou para o parque mais próximo e passo a manhã ou a tarde inteira beneficiando de um dos melhores verões que aquela ilha alguma vez viu. Deito-me na relva, tonto de tanto verde e habituo-me lentamente a estas praias com corvos, campos de ténis e sem mar.

Durante o grande surto de gripe das aves, todos os dias almoço ou janto um frango à borla no Nando's. E há vezes em que ambas as refeições são de lá, generosidades sem o patrão ver de quem trabalha na cozinha e eu ajudo a aprender inglês. Em Inglaterra a H5N1 matou um papagaio.

Filho, está tudo bem por aí? Sim mãe, podes mandar mais dinheiro? Filho, o teu dinheiro já acabou.

*"Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a idade da sabedoria, foi a idade da tolice, foi a época da fé, foi a época da incredulidade, foi a estação da luz, foi a estação das trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, tínhamos nada diante de nós. " História de Duas Cidades (1859), de Charles Dickens