Quando estão contados quase 95% dos votos, o partido do presidente Erdogan consegue cerca de 49% dos votos e 311 deputados num parlamento de 550 lugares. Em segundo lugar ficam os sociais-democratas, com quase 26% dos votantes, o partido curdo, que foi a revelação das eleições de 7 de Junho, baixa mais de 2% mas consegue ultrapassar a barreira do 10% e ficar representado por 60 deputados. Um resultado amargo para os curdos, principais vítimas do recomeço da guerra do Estado contra parte da sua população e de uma repressão cruel.
A fruta e os legumes na feira de domingo de Beyoglu brilham à luz do sol. A roda viva de pessoas e comerciantes é igual à de outros domingos, mas hoje é um dia diferente. É o dia de tentar repetir os resultados eleitorais de Junho, quando o Partido Democrático do Povo (HDP) entrou de rompante no parlamento turco com 13% dos votos, ultrapassando os 10% necessários para obter assentos e elegendo 80 em 550 deputados. Pela primeira vez, um partido pró-curdo ganhou expressão parlamentar sem ser através de candidaturas independentes (para contornar a regra dos 10%). Pela primeira vez em 12 anos, o Partido do Desenvolvimento e da Justiça (AKP) de Recep Tayyip Erdogan perdeu a maioria absoluta. Foi um duro golpe para um presidente cada vez mais autoritário, que se viu obrigado a convocar eleições antecipadas para ontem, 1 de Novembro, perante a indisponibilidade de todos os outros partidos para formarem uma coligação com o seu primeiro-ministro, Ahmet Davutoglu.
Na feira de Beyoglu, como noutras partes da cidade, as pessoas parecem felizes mas há um peso palpável no ar. Somos guiados por uma turca e por um curdo do HDP que trabalham como voluntários na sede do partido deste distrito, que integra a zona da Praça Taksim, a principal avenida comercial de Istambul, a Istiklâl, e o bairro onde estamos, Tarlabası. Uma das nossas guias compra tangerinas para curar a constipação do fotógrafo quando de repente uma mulher começa aos berros e atira uma toranja ao chão. “Eu apoiava o Curdistão independente! Mas o [Abdullah] Öcalan defende as bombas e por isso que se lixem os curdos!”
Ao contrário do que aconteceu em Junho, quando milhões de turcos, curdos e membros de outras minorias se mobilizaram nas urnas alumiados pelo HDP e o seu carismático líder, Selahattin Demirta, hoje o entusiasmo é diferente, nervoso, quase amedrontado. “Não está a ser como em Junho, as pessoas não estão felizes”, diz-nos Rukiye Demir, a presidente do HDP para o distrito de Beyoglu. “Mas estamos confiantes de que vamos superar os últimos resultados, estamos a apontar para os 100 assentos parlamentares, cerca de 15% dos votos.”
Há uma razão para o ambiente de mobilização política ter mudado na Turquia, uma que começa e acaba, como um círculo perfeito, nos atentados de 10 de Outubro – quando duas bombas rasgaram o centro de Ancara, a capital, matando 102 pessoas e fazendo centenas de feridos durante uma manifestação pela paz entre curdos e turcos. Quem quer que o tenha ordenado e executado, quer tenha sido o autoproclamado Estado Islâmico (ISIS) quer a “organização das trincheiras do Estado gerida a partir do palácio presidencial” – como acusou Demirtaşe a sua número dois, Figen Yüksekda –, o objectivo de destruir a energia democrática e afectar as eleições foi alcançado.
“Vês este rapaz?”, dizia-nos Berfin, uma turca a distribuir panfletos do HDP na Istiklâl um dia antes do domingo de eleições, a apontar para um jornal do partido. “Era um dos meus melhores amigos. E agora está morto. Todos nós perdemos muita gente, muitos amigos, família, colegas da escola. Nós ficámos vivos, mas eles estão mortos… Sabes quantas pessoas morreram desde 10 de Outubro? Não estou a falar de soldados, estou a falar de cidadãos, estou a falar de mães curdas que têm de esconder os filhos em campos de refugiados com os sírios e os afegãos para que eles não sejam mortos. Sabes quantos? Mais de 800. Isto é o AKP que faz. E por isso mais importante que os resultados das eleições de amanhã é o que vai acontecer e o que vamos fazer a seguir. A vitória não foi em Junho nem vai ser amanhã.” Tinha um cravo vermelho na mão. Quando lhe explicámos que é a flor da revolução portuguesa, Berfin sorriu com tristeza, no meio da música e das palmas e dos risos dos colegas: “A nossa revolução também há-de chegar.”
Durante uma hora e meia passaram por nós dezenas de carros e tanques urbanos da polícia. Para trás e para a frente, furaram a multidão de gente que entrava e saía do Starbucks, da Topshop, da H&M, de todas as lojas ocidentais e orientais que enchem a avenida. Pouco antes, Demirtaşpasseava-se aqui com José ‘Pepe’ Mujica, o ex--presidente do Uruguai tornado estrela da esquerda internacional que está em Istambul para a feira do livro que começa a 8 de Novembro. Agora um carro da polícia pára e os agentes desatam aos estalos a um grupo de miúdos que se tinha voluntariado para distribuir panfletos do HDP. Os rapazes vêm sentar-se no chão atrás da banca de campanha, choram. É uma espécie de premonição do que guarda o dia seguinte.
O sonho do HDP “Nós passámos pelo mesmo sofrimento que vocês. O vosso irmão foi preso apenas por recitar um poema. Eu sei como o sistema fez os meus irmãos curdos sofrer. Conheço bem as políticas de assimilação forçada. Mas esses dias acabaram.” A frase podia ser de Demirtas, o advogado de direitos humanos tornado líder do primeiro partido de esquerda liberal a surgir na cena política da Turquia. Mas não foi ele quem o disse, foi Erdogan há alguns anos, durante um comício do AKP em Diyarbakir — uma das maiores cidades do Sudeste da Turquia, o oficioso Curdistão turco. Aqui a minoria curda do país (cerca de 14 milhões dos 80 milhões de habitantes) é maioria, aqui um duplo atentado provocou dois mortos e mais de 100 feridos dois dias antes das legislativas de Junho deste ano. Aqui nasceu Demirtas E aqui fez campanha Erdogan quando prometia mundos e fundos a todas as minorias de um país onde quase todas as estátuas e imagens do general Ataturk, o fundador da Turquia moderna, são acompanhadas da frase “Alegre é aquele que pode dizer ‘Eu sou turco’”. Espelho de uma discussão num centro de voto de Diyarbakir, entre um responsável do AKP que tentava expulsar jornalistas estrangeiros e membros do HDP que tentavam impedi--lo. “Se os jornalistas não saírem voluntariamente, arranjaremos outra forma de os tirar daqui”, dizia o islamita do partido no poder. “Este é o meu país, esta é a minha terra, não quero estrangeiros aqui.” Um dos observadores do HDP respondeu: “Este é o país de todos nós, a terra de todos nós.”
As peles de ovelha em que Erdogan se enrolou ao longo dos anos 2000, que lhe garantiram a primeira vitória em 2002, caíram ao chão. Quando comparou a sua detenção de nove meses por declamar um poema religioso em público com a luta de décadas da minoria curda turca, os curdos acreditaram nele, dando ao AKP vitórias estrondosas (em 2011 firmou 26 dos 38 assentos parlamentares pertencentes a províncias de maioria curda). Quando prometeu lutar pelo direito dos curdos a falarem a sua língua, nas escolas e na televisão, os curdos acreditaram nele. Quando o Estado turco abriu negociações com o líder do ilegalizado Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) para pôr fim ao conflito armado pela autodeterminação do povo curdo, todos os que defendem a coexistência pacífica entre turcos e curdos acreditaram nele. O próprio Abdullah Öcalan, o fundador do PKK, acreditou.
Erdogan surgiu na cena política turca como Demirtas surge agora – combatendo a propaganda estatal, condenando as razias de aldeias, as prisões extrajudiciais e a tortura de curdos e membros de outras minorias que se rebelaram contra a retórica ultranacionalista do “turco puro”, tudo o que motivou o início de uma luta armada em 1984 pela mão de Öcalan, que nas décadas seguintes provocou mais de 40 mil mortos. Foi Erdogan que deu início a negociações de paz com o líder do PKK assim que este foi capturado em 1999 e levado para a ilha de Imrali, no mar de Mármara, o único inquilino da prisão especial onde permanece até hoje. Por pressão da União Europeia, Öcalan foi poupado à morte e condenado a perpétua. Na prisão, acreditou que os esforços de paz de Erdogan eram genuínos e convenceu os militantes do PKK a abandonarem as armas. “Está na hora de as armas serem silenciadas para deixar a política e as ideias falarem”, declarou em 2013.
Mas algo aconteceu a par do inédito processo de paz. O primeiro-ministro sunita tornado presidente foi deixando a sua sede de poder transparecer. Primeiro veio a autorização do véu islâmico no parlamento e em edifícios estatais, numa Turquia secular onde há milhares de mesquitas em cada cidade e onde muitos se identificam, como Erdogan, com o ramo sunita do islão. Seguiram-se os protestos em massa para salvar o parque Gezi na Taksim, o Occupy Istambul, que se alargou a todo o país e durante meses reuniu nas ruas milhões de pessoas, sobretudo das minorias, muitos jovens da esquerda liberal também. Daí nasceu o HDP, o partido anti-capitalista, ambientalista, de defesa dos direitos das mulheres, da comunidade LGBT, dos curdos, dos alevis (xiitas espirituais), dos ateus, pelo qual Demirtas se candidatou às presidenciais de 2014 – quando Erdogan, impossibilitado de se recandidatar como primeiro-ministro, trocou de cadeira. Ao longo de tudo isto, as negociações de paz com os curdos mantiveram-se, pelo menos na aparência. Mas a par delas, o chefe de governo tornado presidente deu início a uma feroz estratégia de aproveitamento da guerra na vizinha Síria.
Para conseguir que Bashar al-Assad caísse pela força popular e dos grupos da oposição após o rebentamento da guerra civil em Março de 2011, deixou que as coisas piorassem a todo o custo, tendo até financiado vários grupos da oposição. O plano não resultou como pretendia e quem foi ganhando força foi o partido gémeo do PKK na Síria, o YPD, que foi capturando grandes pedaços do território a Norte, na fronteira com o não-reconhecido Curdistão turco. Em Kobane, um desses enclave curdos no lado sírio, foram e continuam a ser os peshmerga quem impede mais avanços e ganhos territoriais dos sanguinários jihadistas do ISIS. A possibilidade de as aspirações de um Curdistão independente se concretizarem assusta tanto Erdogan que muitos, dentro e fora da Turquia, dão como certo que tem sido ele um dos principais financiadores do ISIS – uma forma de impedir que os cantões curdos que têm surgido na Síria ajudem a criar o Curdistão que o PKK sempre desejou. De tal forma que até há poucos meses Erdogan se recusou a participar na coligação internacional que bombardeia o ISIS. E quando o fez relançou a ofensiva armada contra os curdos.
Violações Na sede do HDP em Beyoglu, monitores eleitorais entram e saem num frenesim nesta manhã de eleições, correm de escola em escola, a pé e de carro, para garantir que tudo corre nos conformes. Outros ficam no centro de campanha a cozinhar. Na parede, um papel onde se lê “Mulheres, Vida, Liberdade” em curdo está rodeado de três retratos, as caras sorridentes de Sakine Cansız, Fidan Dogan e Leyla Söylemez, as três curdas assassinadas em Paris a 9 de Janeiro de 2013 – “ao estilo de execução”, nas palavras do ministro francês do Interior, Manuel Valls. Os autores do homicídio estão a monte até hoje, nenhuma investigação concluída. Na parede em frente, Öcalan sorri-lhes.
Do centro, num bairro em tempos perigoso onde hoje pululam albergues, à escola onde vamos assistir à votação são 15 minutos a pé. Desce-se a rua, atravessa-se a feira de domingo, entra–se na estrada mais movimentada de Tarlabası e chegamos. Tudo parece decorrer dentro da normalidade, salvo a presença de agentes de polícias em todo o lado, a olhar-nos suspeitosos. Enquanto entrevistamos Gülsüm Agaoglu, uma carismática deputada do HDP que veio votar aqui, uma rixa começa no primeiro andar da escola. Um apoiante do AKP tentou votar com um bilhete de identidade falso, esta não é a estação de voto dele, provavelmente já votou noutro sítio. Um monitor do HDP repara e desatam ao soco e ao pontapé. Não se percebe quem começou, mas tão-pouco interessa. Não há aqui observadores internacionais.
Ao longo do dia, enquanto corremos escolas de vários bairros, vai havendo cada vez mais polícia a seguir-nos, cada vez mais observadores internacionais impedidos de fazer o seu trabalho, cada vez mais episódios estranhos de carros sem matrículas a aparecerem, de boletins de voto sem a alínea do HDP, de monitores eleitorais a obrigarem outros a assinar relatórios em branco que só depois serão preenchidos com a contagem dos votos. Primeiro vem a estranheza, depois a incredulidade, depois o medo. Quando as urnas fecham e a contagem começa, alguns canais ignoram todas as irregularidades e prevêem a maioria absoluta do AKP; outros noticiam-nas em Diyarbakir, onde há zonas totalmente tomadas por membros do PKK há vários meses que combatem nas ruas as forças de segurança turcas e hoje estão a ser responsabilizados pelas irregularidades nas urnas.
Os correspondentes estrangeiros denunciam no Twitter falhas de electricidade em várias cidades e bairros, questionam as “coincidências” de tal acontecer em zonas onde os curdos e outras minorias da Turquia predominam. Da mesma forma que nas últimas semanas as organizações cívicas e os sindicatos denunciavam a “pior repressão de jornalistas críticos do regime” em muitos anos. Na televisão, com mais de metade dos votos contabilizados, noticia-se que Erdogan vai conseguir o que queria. O homem que há menos de um mês disse que 3 mil milhões de euros da UE não chegam para “resolver” a crise de refugiados que entram às centenas de milhares no bloco europeu há vários meses e que, em troca de continuar a albergar milhões de refugiados sírios e de outros países na Turquia e impedi-los de entrar na UE quer que o processo de adesão à UE seja retomado, vai voltar a mandar no parlamento. Ressoam as palavras de Berkin. “A vitória não será agora.” Horas antes, Gülsüm, com o seu olhar expressivo e a cara tatuada, dizia acreditar que o HDP talvez ganhasse 115 assentos, mais 35 que em Junho. Prometia: “Vamos continuar a lutar contra o palácio. Se o AKP quiser voltar a convocar eleições porque não obteve maioria, até membros do partido se vão juntar a nós. Este país não precisa de mais eleições. E se ganharmos 115 assentos como estamos a prever, nós, que nos opomos à guerra, não vamos considerar uma coligação com os que apoiam a guerra. Mas penso que vamos poder formar uma coligação, desde que em linha com a garantia constitucional de respeito por todos os direitos humanos.” Saiu a correr da escola para apanhar o homem que tentou votar ilegalmente. Nunca mais a vimos. O que será da Turquia amanhã?