O historiador e comentador Pacheco Pereira não tem tempo. A sua vida divide-se entre o passado que escreve, está a entregar o quarto volume da biografia de Álvaro Cunhal, e os tempos interessantes que se vivem. Viver entre dois mundos é a sua maldição.
Acha que há espaço para a democracia na Europa?
Espaço para a democracia há, no sentido de que a gente gostaria que a Europa fosse democrática. Agora é verdade que se está a verificar um fenómeno muito preocupante: há uma enorme falência da democracia em muitos países europeus suscitada pelas chamadas regras europeias. Há algo que pode ser entendido como irónico em relação ao projecto da denominada construção europeia: o espaço da soberania está a tornar-se mais compatível com a democracia que o espaço da integração europeia. A soberania nacional ao oferecer um espaço nacional em que a discussão existe é fundamental para a permanência da democracia. Quando na Europa, de uma forma autoritária, sem que os povos tenham sido consultados, se estão a diminuir poderes de parlamentos, a impor em tratados limites orçamentais e a considerar que há votos de primeira e votos de segunda, gera-se um encolhimento preocupante da democracia. Os fenómenos perversos motivados por essa situação verificam-se em todos os países europeus. Veja-se o caso das eleições da Polónia, a questão da Frente Nacional em França, as alterações do Partido Trabalhista no Reino Unido, com a eleição de James Corbyn, o que está a acontecer na Grécia, em Portugal, Espanha e até na Alemanha. Por todo o lado começa a acontecer uma reacção a esta Europa autoritária, agravada por estes anos de crise.
Esse tipo de tomada de consciência do problema pode ser uma explicação do conjunto de reacções negativas que suscitou o discurso de Cavaco Silva em órgãos tão insuspeitos de simpatia esquerdista como o “The Telegraph”, a “Forbes”, o “Wall Street Journal” e outros?
As pessoas percebem que quando um Presidente da República vem dizer que há partidos de primeira e partidos de segunda, indo quase ao limite da ilegalização desses partidos, dizendo a um milhão de portugueses que o seu voto não vale para o governo, está a fazer esta distinção, que está implícita em muito do discurso europeu – veja-se o caso da Grécia – estamos a entrar numa área muito perigosa. É um perigo para a democracia e a Europa que apenas os partidos do PPE tenham um direito quase natural de governar. Foi isso que o discurso de Cavaco Silva incorporou, nomeadamente a relação estreita entre política e negócios e o que se pode e não fazer com os mercados e a economia. Quando se faz essa relação está-se a pôr em causa um princípio fundamental da democracia que é um poder político legitimado estar acima de todas as outras instâncias, e de todos os outros poderes, inclusive os poderes fácticos associados aos mercados.
Mas isso é reversível? É possível haver globalização e democracia? É possível democratizar a globalização e a integração europeia ou só há democracia com soberania nacional?
Penso que a discussão que considera que estes fenómenos se devem a uma resposta à globalização não tem nenhum sentido, tudo o que se passa na Europa é um retrocesso nessa resposta. A destruição do processo inicial dos fundadores da Europa, que era um processo muito prudente, de pequenos passos, e muito assente na ideia de que todos os países tinham o mesmo interesse em participar e o mesmo poder: pelo menos, em termos virtuais, o voto do Luxemburgo valia o mesmo que o da Alemanha, embora o Luxemburgo soubesse que não era a Alemanha e a Alemanha que não era o Luxemburgo. Este caminho começou a ser destruído há algum tempo. O processo não começou nos anos da crise, embora os anos da crise tenham dado uma dimensão autoritária a esse processo. Não se trata aqui de uma verdadeira resposta aos problemas da globalização. A globalização é muitas vezes apenas um pretexto legitimador de ter apenas governos de direita. Esse processo usa a globalização como pretexto, mas na prática defende os interesses económicos e financeiros europeus, que quando é preciso se tornam proteccionistas. Há muitas razões pelas quais a Europa está a perder o comboio da globalização que não têm a ver com a interpretação pseudo-económica que se tem dado. Por exemplo, o desinvestimento nas universidades e na investigação em muitos países europeus.
É possível alterar o processo em termos de democracia sem alterar os mecanismos económicos que estão a ser servidos? O TTIP que está a ser negociado prevê no seu articulado que um empresário possa ser indemnizado em caso de greve, há uma série de matérias que saíram do espaço da decisão política e foram colocadas noutras instâncias, uma espécie de constitucionalização da saída do político das decisões de política económica, como o Tratado Orçamental. É possível democratizar sem mudar isso?
Tem de ser alterado, e a alteração tem que ser no plano político. Há duas coisas que são fundamentais: uma é garantir que os votos são todos iguais. Ovoto dos que têm reservas quanto à Europa tem o mesmo efeito que o voto de um europeísta federalista convicto (há muito poucos em Portugal). O voto não pode ser sujeito a um visto prévio da Europa, não há nenhuma razão substantiva que dite que os tratados têm de ser aplicados como estão a ser: para consolidar uma hierarquia de poder europeia que neste momento é exclusivamente alemã e do PPE (Partido Popular Europeu). Quando se fizer uma análise destes anos há-de verificar--se que a questão não é tanto a senhora Merkel como um partido hegemónico que se comporta como a internacional comunista nos anos 30, com delegações em vários países e um poder centralizado. Há muitas coisas parecidas com o funcionamento da Europa e o que era o projecto da internacional comunista. Muita gente vai ficar com os cabelos em pé com esta afirmação, mas talvez se soubessem mais de história percebessem o que estou a dizer: a ideia de que há um centro de decisão, sobretudo alemão, apoiado numa extensa burocracia, é exactamente como funcionava a comissão executiva da internacional comunista. A União Europeia decide o que serve e não serve, lançando às feras países, como a Grécia, de uma forma vergonhosa. A maneira como foi tratada teve importantes consequências, suscitou a fractura dos partidos socialistas com a política de adesão às directivas do PPE. Os partidos socialistas eram, no essencial, uma espécie de mandaretes do PPE. Hoje observam-se dentro deles movimentos, como o que ocorreu no Partido Trabalhista britânico, que expressam uma revolta popular. Veja-se o que está a acontecer em Portugal com o protoentendimento dos partidos da esquerda. Tudo isto é uma reacção a este processo de construção europeia e ao chamado “não há alternativa”, que é de facto uma ideologia autoritária destinada a garantir que não há alternância política.
Mas esse mecanismo não é para garantir que independentemente das escolhas políticas a economia corre sempre da mesma maneira?
Depende, porque mesmo esta política não é favorável a todos os sectores da economia. É apenas favorável a certos sectores financeiros, que geraram esta crise. É muito interessante ler declarações de alguns responsáveis da bolsa francesa que dizem que uma parte de quase 90% do dinheiro que circula pelos canais financeiros é opaca. E fazem uma hierarquia que vai dos fundos ao mercado das obrigações, que é mais transparente. Mas essa hierarquia faz-se entre 90% de opacidade e 50% de opacidade. Estamos perante um poder fáctico que ninguém controla, onde há dinheiro de todas as proveniências, dinheiro que fugiu ao fisco, dinheiro das actividades criminosas, dinheiro tóxico, e esta falta de controlo é um factor que faz com que não se possa aceitar acriticamente que sejam os mercados que decidam. Ora um processo de mudança tem custos. Uma parte dos europeus começa a considerar aquilo que eu muitas vezes digo, que mais vale comer terra durante algum tempo que comer terra toda a vida.
Mas esse processo de mudança enfrenta dificuldades. Na democracia a regra é uma pessoa um voto, mas no capitalismo o poder é de quem tem mais capital. Como é que retira a influência do capital na democracia sem uma intervenção de outro tipo?
A enorme opacidade dos mercados tem de ser extirpada. É preciso criminalizar essa opacidade.
Mas onde é que há margem para uma decisão política nesse sentido?
As coisas não mudam de um dia para o outro, mas têm estado a melhorar. No entanto, tem de se ir no sentido contrário ao “não há alternativa” e à hegemonia do “economês”, que é na prática um discurso político que tem de ser combatido. É esse discurso que está a ser usado na Europa para combater o centro. Umas das razões por que temos crises em muitos países europeus, como Portugal, é uma das consequências destes anos de crise ter sido a enorme disfunção dos sistemas políticos. A partir do momento em que os socialistas se tornaram personagens secundárias do PPE, e acabaram por assinar de cruz grande parte das medidas e assumiram a política do “não há alternativa”, isso representou uma radicalização. Estamos a assistir a um fenómeno novo que em bom rigor terá existido durante algum período do PREC, mas o PREC tinha muitas condicionantes que têm a ver com a época e a mudança de regime. Nós estamos a assistir a uma resposta duplamente frentista: a consolidação de uma frente de direita que varreu a parte social-democrata do PSD e representa um processo de fusão na prática com o CDS, e que felizmente para os portugueses é minoritária, e estamos a assistir também a uma pulsão à esquerda. Umas das ideias mais ridículas que circulam por aí é que António Costa faz isso para salvar a pele, como se António Costa não tivesse as condições geradas pelo facto de 62% terem votado contra o governo de Passos Coelho. O único voto que se pode somar, além do da coligação – não é o dos partidos europeístas, não é dos partidos a favor ou contra a NATO – é se se votou a favor ou contra o governo. Enquanto à direita havia uma relação perfeita, à esquerda não havia até agora. Porque é que que ela se fez hoje? Porque há consciência em certos eleitorados, incluindo o do PCP, de um factor: os comunistas têm uma sensibilidade muito aguda ao seu eleitorado e perceberam que no fim da campanha a principal questão para essas pessoas não era os resultados da CDU mas que não continuassem as mesmas pessoas no poder. Sabendo isso, uma direcção pragmática dos comunistas sabe que não pode, para manutenção de uma certa identidade, isolar-se de uma possibilidade de entendimento à esquerda. Pode ser que este reequilíbrio, criado pela existência de uma frente de esquerda, permita reconstruir o centro. Mas enquanto não houver uma reconstrução do centro, que tem de ser feita em parte no PSD e no PS contra “o não há alternativa”, estamos condenados a este confronto ente esquerda e direita, que a curto prazo pode servir para reequilibrar o sistema político, mas a longo prazo tem fragilidades.
Uma possível eleição de Marcelo Rebelo de Sousa não é uma reconfiguração do centro?
Pode ser, e é por isso que o Presidente da República actual lhe deixou a pior das heranças. A última coisa que Marcelo Rebelo de Sousa quer é, caso Cavaco mantenha Passos Coelho à frente de um governo de gestão, ter de tomar, como primeira decisão, a convocação de novas eleições. Até porque não é líquido que as eleições não repitam os resultados actuais.
Depois de nove meses de governo de gestão o presente será ainda mais complicado…
Só tomo posição sobre as presidenciais depois de ver o final deste ciclo: acho que as presidenciais ganham maior ou menor relevância em função do que acontecer no próximo mês. Agora tenho de admitir que Marcelo Rebelo de Sousa tem colocado a sua candidatura numa posição muito distante da posição política prática do PSD e CDS. Ele precisa dos votos desses partidos mas tem-se esforçado por ter um discurso político mais centrista.
Tem uma vida facilitada porque não tem nenhum candidato à sua direita…
Nem nenhum candidato forte à sua esquerda, porque o PS abandonou o terreno das presidenciais, o que é um erro estratégico grave…
Como se prova pelo actual mandato de Cavaco…
O novo Presidente vai ter um papel determinante. O PS, ao entregar o terreno eleitoral, dada a sua posição agnóstica, à candidatura de Sampaio da Nóvoa e de Maria de Belém, cometeu um enorme erro. Até porque a candidatura de Maria de Belém é uma candidatura que foi patrocinada pelo PAF e pelas facções internas do PS para criar dificuldades à direcção de António Costa. É uma candidatura que vem manchada eticamente, por ter sido tratada de forma entusiástica por tudo que é comentador e think tank de direita que vai à televisão elogiar a “coragem” da Maria de Belém, para assim atacar Sampaio da Nóvoa e António Costa. É uma candidatura de fracção no interior do PS e o grupo que a apoia, tirando pessoas como Manuel Alegre, é a ala mais à direita do PS, que é uma das eventuais grandes perdedoras neste processo de formação de um pólo governativo à esquerda.
Mas à esquerda não foi só o PS que abandonou as presidenciais: o PCP e o BE ao apresentar candidatos próprios estão a dizer que não há segunda volta ou a dar essa passagem a Maria de Belém…
Mas terem candidatos próprios não significa necessariamente que não haverá segunda volta. Dificulta a passagem de Sampaio da Nóvoa, mas pode ter a vantagem de mobilizar os sectores todos. As eleições presidenciais vão ser muito moldadas pelo resultado deste processo de formação de governo que decorre das legislativas.
Como vê o mandato de Cavaco Silva?
O mandato teve aspectos positivos e negativos até ao momento em que se dá esta radicalização à direita do processo político. E isso começa a dar-se durante a queda de Sócrates. Pode ser vício de historiador, mas as pessoas tendem a fazer uma amálgama do que foram processos diferentes: Passos Coelho nas eleições de 2011 não é o de 2012. Em 2011 evidenciava muitos aspectos da crítica que tinha feito a Manuela Ferreira Leite. Não era hostil às grandes obras públicas, tinha posições que não eram muitos distintas das que agora critica a Sócrates. Isso para se demarcar de Manuela Ferreira Leite, que tem um papel pioneiro na denúncia dos abusos da época de Sócrates. A minha experiência é reveladora, porque sei muito bem como funcionaram os mecanismos políticos nesses anos, e quem apoiou Sócrates na fase final até àquela reviravolta, que ainda hoje não está muito esclarecida, do voto contra o PEC IV. Não se sabe o que aconteceu naquela célebre reunião que foi ocultada e depois revelada, não se sabe que garantias teria dado Passos Coelho a Sócrates sobre o PEC IV. Havia pressões internacionais, visto que a senhora Merkel estava claramente com Sócrates. Aliás, alguma dureza do Memorando e do seu discurso sobre Portugal vem do chumbo do PEC IV. A interpretação que hoje Passos Coelho, Portas e Cavaco fazem do Memorando é uma interpretação que surge das dificuldades de controlar o défice de 2011. Se for ver a primeira medida de austeridade, que é o corte de metade do subsídio de Natal, é apresentada como única e excepcional e bastava. Quando se entra em 2012, Vítor Gaspar e o governo começam a perceber que não iam controlar o défice e estavam muito longe de poder cumprir as promessas eleitorais e aí dá-se uma reviravolta. É a partir desse momento que o discurso do Memorando, que até ali não era muito distinto do de Sócrates de que o Memorando era compatível com o crescimento económico, sofre uma inflexão. É nessa altura que se dá a surpresa do desemprego e se pede à troika a revisão dos objectivos do défice dos dois anos. É nessa altura que vêm acima todas as ideias péssimas que moldaram esses anos do “não há alternativa”, quando tinha havido propostas alternativas. As pessoas esquecem-se, e aí a comunicação social tem um papel determinante com a sua memória de passarinho, que havia propostas diferentes para o Memorando, como a de Miguel Cadilhe.
Mas como se resolve isso?
Sou a favor da reestruturação da dívida, mas sou também favorável a que se tenha em conta que temos uma elevada dívida. Sempre achei que o dilema austeridade versus não austeridade é um falso dilema. Depende de como se faz a austeridade. Sou contra ela ser utilizada para fazer engenharia social: que sejam sempre os mais pobres e a classe média a pagar, e se destrua o equilíbrio nas relações laborais entre patrões e trabalhadores. O que se viu nestes últimos anos foi a destruição das classes médias. A classe média, um importante factor de modernização depois do 25 de Abril, foi destruída por uma política radical. E vivemos uma situação política extremada porque a classe média foi radicalizada: uma parte para a direita outra para esquerda. Porque é que há uma passagem de votos do PSD para o BE? E só não há para o PS porque ele se dirigiu para o lado errado: o PS fez uma campanha eleitoral para um centro que não existia. O PS dirigiu-se a um eleitorado que acha sempre que o PAF é o melhor para defender os seus interesses.
Está a falar do chamado programa Centeno?
O documento Centeno foi uma armadilha em que o PS se meteu. E quando quis corrigir pareceu muito mais radical do que era. O PS devia dirigir-se às pessoas que perderam a sua dignidade e as suas condições de vida. Devia dirigir-se às pessoas que nos últimos anos foram tratadas abaixo de cão. Dou sempre um exemplo, que não é muito popular, que é o caso dos trabalhadores reformados do metro. O que se lhes fez não é um mero problema de austeridade, o que se fez foi empurrar centenas de trabalhadores do metro para uma reforma antecipada porque isso interessava à empresa, e um ano depois retiraram aquilo que tinha sido livremente pactuado com esses trabalhadores. Isto para mim é um bom exemplo do que aconteceu nestes quatro anos: a perda da noção da boa-fé nos contratos de Estado. A perda de noção de que os contratos são para cumprir. O que aconteceu foi que os contratos com os mais fortes foram cumpridos e com os mais fracos foram violados à cabeça. O que aconteceu nos últimos quatro anos não foi apenas uma política económica, foi a aplicação, a partir de de 2012, de um projecto de engenharia social que faz com que no PAF e à volta da coligação haja uma fusão com interesses económicos como nunca houve na democracia portuguesa. Os mesmos empresários que andavam em cortejo com Sócrates, com Durão Barroso e com Cavaco têm hoje muito mais que um cortejo: têm uma fusão de interesses com Passos Coelho, Portas e Pires Lima, que lhes deram aquilo que eles nunca tinham conseguido.
O Pacheco Pereira é militante do partido que faz essa fusão.
A pergunta que quer fazer é porque ainda estou no PSD, com quotas pagas e plenos direitos? Repondo-lhe: ainda tenho uma vaga, insisto na palavra “vaga”, esperança de que mude.
Não é apenas para os chatear?
Não. Contrariamente ao que se pensa, paga-se muito por ter uma posição como a minha, mesmo as companhias são conjunturais. Tenho um certo tipo de popularidade à esquerda, mas tenho a plena consciência de que isso é efémero, que se deve a eu dizer algumas coisas com alguma liberdade. Porque é que ainda estou no PSD? Porque acho que esse partido é importante na sociedade portuguesa, sou defensor de haver partidos com uma componente de centro, só que em 2015 não há centro. Não há neste momento um centro, a coligação é de direita. E não há esse centro e as vozes que podiam personificar esse centro, uma certa ala social-democrata no PSD, está dependurada no vazio, como Ferreira Leite, Bagão Félix e eu, aquilo a que chamo os “estranhos companheiros de cama”, usando a metáfora shakespeariana. Estas coisas têm de se equilibrar a prazo: temos de ter um centro político, mais soberanista e menos falsamente “europeísta”, que corresponda aos objectivos pelos quais o PSD foi criado.
Mas esses companheiros de cama divergem na avaliação de um possível governo de esquerda.
As pessoas têm percursos de vida diferentes. É natural que reajam de forma diferente, mas os últimos comentários já são mais moderados.
Nestas eleições sublinhou a importância da ligação do PCP a uma certa realidade social e de certa forma analisou o BE como um fenómeno mais virtual. Mas quem nestas eleições subiu para o dobro foi este último. Como analisa?
O Bloco de Esquerda subiu porque beneficiou da radicalização da classe média. É mais natural que essa radicalização torne mais fácil votar no BE que nos comunistas. O PCP é um partido de identidade forte, e com uma relação muito próxima com determinados sectores da sociedade. Mas ao mesmo tempo com fronteiras muito limitadas: as fronteiras do PCP são desenhadas a ferro e fogo, pela história, pela ideologia, pela linguagem. Eu, por exemplo, acho que o PCP se diminui a si próprio por usar uma linguagem muito estandardizada, como quando chamam “pacto de agressão” ao Memorando da troika. Esta linguagem pode ser importante para manter uma certa identidade em alguns sectores da sociedade portuguesa, mas não é boa para crescer. E num período de dissolução dos costumes, como é o que estamos a viver, é mais natural o voto no BE, é uma coisa mais moderna – com as “meninas”, como disse o Fernando Rosas, que parece que provocou alguma fúria nas feministas do Bloco –, dá uma dimensão mais aceitável. E tem um efeito poderoso na comunicação social do PCP. Os comunistas podem pôr 100 mil pessoas ou 200 mil pessoas na rua que só têm direito a uma pequena notícia de circunstância, porque ninguém quer saber dessas 200 mil pessoas: essa é a força do PCP e a sua fraqueza. A sua força é que quem está ali está para lavar e durar; a sua fragilidade é essa fronteira que o PCP não consegue ultrapassar e que é em grande parte criada pela comunicação social.
Mas fala da comunicação social sempre como se fosse uma entidade independente, sem laços sociais.
Não acho que seja uma entidade independente, pelo contrário, estou a enunciar as suas dependências, mas acho que é uma instância que não pode ser reduzida ao determinismo económico e político. É uma instância com autonomia, e essa autonomia não é toda boa, parte dela é corporativa: são as ideias circulantes da classe e o seu corporativismo e comportamento de rebanho, que diminui o seu pluralismo. É uma comunicação social muito moldada por uma aproximação ao político, que é em grande parte a que gerou Marcelo Rebelo de Sousa. Marcelo é o grande educador do jornalismo político, e deu--lhe a base interpretativa: os cenários, uma atenção ao calendário, os factos políticos, a que o Portas acrescentou as frases assassinas e os sound bites. E uma parte dos jornalistas formou-se nessa escola dupla: a do “Independente” e a do “Expresso”. E isso faz com que tenham uma aproximação muito pouco criativa e reagem muito mal às mudanças. Sempre me recusei a fazer cenários sobre estas eleições, dizendo que depois das eleições tudo muda. Nós na história sabemos que o principal elemento dela é a surpresa, e estamos fartos de ter surpresas: o Estado Islâmico é uma surpresa, a Grécia não estava inscrito nem como começou nem como acabou. Há muita coisa nova, e que altera as regras de jogo. A elite jornalística, sobretudo a que faz opinião, que é muito próxima das direcções e dos donos e dos seus interesses, tem tendência a não se querer desdizer a si própria. E como nos últimos quatro anos muita gente alinhou no “é inevitável a austeridade”, “não há alternativa” e num discurso catastrofista, perante a possível alternância não podem perder a face. Isso aliado a uma enorme ignorância dá coisas como dizer que vamos regressar ao PREC e jornais que dizem barbaridades como quem manda em Portugal é o PCP. É de doidos.
Como interpreta esta quase histeria quanto a um possível governo com apoio do PCP e do BE?
Há um mito deste governo e o programa da esquerda. O que pode haver com um governo de António Costa é o que se chamava antigamente um programa mínimo. O programa máximo do PCP e do BE é a revolução: é mudar as relações económicas e sociais. Mas um acordo mínimo pode ser muito importante. Significa dar àqueles que nestes últimos anos sofreram uma folga considerável, e isso tem um valor político, podem sempre dizer fomos nós que conseguimos isso no meio de grandes dificuldades. Vejo às vezes comentadores dizerem que o PC vai perder a sua força na CGTP, esquecendo que há um aspecto importante na força das instituições que é aquilo que os americanos chama “deliver”, quer dizer, dar resultados. É um facto que, nestas circunstâncias difíceis, se não houvesse sindicatos isto seria muito pior. Estamos num período de grande mudança, como diz aquele provérbio atribuído aos chineses que na realidade é inglês, “que vivas tempos interessantes”, que é uma maldição e portanto exige homens e mulheres grandes. l