O problema de sermos achatados nos pólos


Não é esse o propósito primordial mas há filmes que têm o condão de nos fazer sentir envergonhados. A vida do congressista gay Harvey Milk em San Francisco ou o sofrimento da comunidade negra na marcha entre Selma e Montgomery acentuam a desilusão com a forma desumana com que se via – e ainda se…


Não é esse o propósito primordial mas há filmes que têm o condão de nos fazer sentir envergonhados. A vida do congressista gay Harvey Milk em San Francisco ou o sofrimento da comunidade negra na marcha entre Selma e Montgomery acentuam a desilusão com a forma desumana com que se via – e ainda se vê em alguns cantos – o mundo. Volta e meia, surgem mais e mais produções cinematográficas que, apesar de serem quase todas centradas nos Estados Unidos, têm uma extensão natural ao resto do mundo do racismo, xenofobia e homofobia que ditou cartas durante demasiado tempo. Por maior ou menor resistência conservadora, o caminho será sempre o da evolução e daqui a umas décadas serão outras gerações a sentirem vergonha da forma como algumas minorias são tratadas hoje.

O desporto sofre dos mesmos preconceitos. Os casos de cânticos racistas no futebol já provocaram demasiados episódios que envergonham os seus protagonistas. As sanções podem ser pesadas mas é difícil mudar a mentalidade de um adepto que não sabe nem nunca foi habituado a pensar de outra forma. Porque ficar calado será sempre muito diferente de alterar o raciocínio.

O árbitro da final do Mundial de râguebi é um excelente exemplo de como pode haver esperança e que se calhar seria preferível se o mundo fosse oval e não achatado nos pólos e nas mentes. Se calhar, é essa a diferença que fez com que o galês de 44 anos pudesse ter uma segunda oportunidade na vida, depois de quase se ter suicidado por não querer ser gay. Owens sentia que não se enquadrava, não sabia o que esperar e não queria desiludir os pais numa sociedade fechada. A vida esteve por um fio mas a reviravolta é impressionante.

A história dava um filme mas o mais importante é sublinhar a forma como a mentalidade aberta de todos os intervenientes permitiu que Nigel Owens evoluísse como árbitro e se tornasse quase unanimemente o melhor do mundo. O percurso não é perfeito e já passou por episódios de homofobia mas soube resolvê-los da melhor maneira, como no caso em que em vez de fazer queixa decidiu proporcionar um frente-a-frente com o adolescente de 18 anos que o tinha insultado. O rapaz percebeu que tinha errado, pediu desculpa e ambos seguiram o seu caminho.

É também essa descontracção que faz com que Owens se imponha no campo de forma natural. Não tem medo de brincar com a sua homossexualidade e sabe que conquistou por direito e mérito próprios o respeito dos jogadores. A forma como critica o teatro no futebol – ele que até cresceu como adepto do Wrexham, numa altura em que o clube galês chegou a eliminar o FC Porto de Paulo Futre e companhia (1984) – e coloca jogadores como o capitão inglês Chris Robshaw em linha com um simples “Christopher!” ganham destaque na internet e ajudam a aumentar o prestígio de alguém que é muito bom no que faz. E isso é que importa.

Coordenador de desporto

Escreve ao sábado