As moções de rejeição de programas de governo não são uma raridade na democracia portuguesa. Estamos à beira da 30.a Não é sequer inédito que façam cair governos. Já aconteceu. Mas, no caso, tratava--se da primeira experiência de um governo de iniciativa presidencial. E foi há 37 anos, nos primeiros passos da democracia. Há mais de dez anos que não se debate uma iniciativa do género.
A esquerda ainda não se entendeu sobre se avançam três textos, dois ou apenas um, conjunto. Uma coisa é certa, depois doprimeiro aprovado os outros já nem vão a votos, e a aprovação já está inscrita nas vontades de PS, PCP e BE. Ou seja, o governo que tomou ontem posse tem mesmo os dias contados. Como o de Alfredo Nobre da Costa, em Setembro de 1978. Foi o único a ser rejeitado até hoje, apesar de Maria de Lurdes Pintasilgo também ter andado lá muito perto.
Nesse ano e no seguinte, sob resgate financeiro externo pela primeira vez, o país conheceu três governos de iniciativa presidencial e, entre os dois já referidos, esteve o de Carlos Alberto Mota Pinto, que também enfrentou uma moção de rejeição do PCP que acabou bloqueada por PSD e CDS. Os tempos eram de ideologias bem vincadas e os debates e votação das moções nestes dias fizeram-se numa dança de alianças que transformam as negociações do último mês político num episódio trivial.
A história até começa antes dos governos promovidos pelo Presidente Ramalho Eanes. No início desse ano, Mário Soares venceu as eleições e promoveu uma aliança improvável com o CDS que levou o PSD e o PCP a avançarem com moções de rejeição ao programa do governo. No debate do programa, o deputado social-democrata Sérvulo Correia atirava a Freitas do Amaral: “Duvido que o eleitorado que votou no CDS tivesse admitido esta semicoligação, tal como duvido que o eleitorado que votou PS também o tivesse admitido.” O fundador do CDS jurava que na campanha referira “expressamente admitir fazer alianças ou só com o PSD, ou com o PSD e o PS, ou só com o PS”. É trocar os nomes aos partidos e ver reutilizada a acusação e a justificação nos próximos tempos. Na votação, PS, CDS e os independentes Galvão de Melo, Aires Rodrigues e Carmelinda Pereira, salvaram o governo, contra o PSD, que votou com a esquerda da UDP. OPCPabsteve-se apresentando um texto próprio que também chumbou.
Essegoverno durou um ano e a solução que se lhe seguiu foi a de Nobre da Costa, que caiu às mãos dos mesmos PS e CDS que tinham enfrentado a primeira iniciativa do género. Freitas era duro no debate do programa deste governo atirando a uma equipa de independentes. “Um governo sem partidos pode conduzir – e bem mais depressa do que se julga – ao Estado sem partido, isto é, ao regime do partido único, ou seja, à ditadura”, dizia o democrata-cristão. OPSD votou contra e teve ao seu lado ex-deputados do PS (ver ao lado).
A dança de alianças não terminou aqui. Repetiu-se na tentativa de rejeição, pelo PCP, de Carlos Mota Pinto, em que o CDS já esteve ao lado do PSD a votar contra e o PS se absteve. Os partidos da direita voltaram a unir-se para tentar rejeitar o programa e o governo de Maria de Lurdes Pintasilgo, mas não chegou para tudo. Depois da votação, Rui Pena, do CDS, dizia esperar, apesar de o governo não cair, que tirasse “as necessárias conclusões” da rejeição que colhera apenas uma maioria simples. Os deputados da bancada reclamavam:“Mas a moção foi aprovada!” “Até nisso são ignorantes!”, atirava-lhes Vital Moreira da bancada socialista. Pintasilgo manteve-se pouco mais que os cem dias inicialmente previstos.
Nos anos seguintes, já com governos eleitos, as moções não abrandaram (ver infografia). Francisco Pinto Balsemão experimentou seis em pouco mais de dois anos, em duplicado pelos mesmo autores: PS, ASDI e UEDS (juntos na Frente Republicana e Socialista); PCP; MDP/CDE. Já Cavaco Silva, entre 1985 e 1991, enfrentou sete moções de rejeição no parlamento.
O PM nunca rejeitado
Este ritmo foi cortado pelo primeiro governo minoritário de António Guterres, que, no entanto, não foi poupado no segundo mandato, com o BE a estrear-se no parlamento e neste ataque político ao lado do PSD, que também avançou com um texto, ambos para chumbar. Nestas contas só há um primeiro-ministro que nunca enfrentou uma rejeição a um programa, e apresentou dois: José Sócrates.
A verdade é que desde Pedro Santana Lopes o uso deste instrumento político desapareceu. A última vez que foi usado foi precisamente em Julho de 2004 – altura em que Durão Barroso se demite para ir presidir à Comissão Europeia, com Jorge Sampaio a empossar Santana – e por iniciativa de cada um dos partidos da oposição: PS, PCP, BE e PEV.
No debate, oprimeiro-ministro apontou ao inimigo número um: “O PS sabe, e sabe bem, que, se fôssemos para eleições, ia perdê-las novamente, não por causa do actual líder da coligação mas porque a vida é assim.” Mas o líder parlamentar, António José Seguro, estava convicto de que, “quanto mais tempo passa, mais os senhores estão perto da porta da oposição e mais o país, com o PS, está perto de ter um governo com capacidade para resolver os problemas que os senhores criaram e agravaram”. Daí a oito meses os socialistas estariam no governo, mas não graças a esta rejeição que não passou.
A 10 de Novembro, no final de dois dias de debate do programa do governo PSD/CDS, a moção de rejeição está de volta mais de dez anos depois e, a julgar pela conjugação das vontades de esquerda, terá efeitos que um governo eleito nunca experimentou.